«(…) Lançou fora a ponta do
cigarro e a luzinha vagabundeou na noite e apagou-se no Tejo. A passagem de
nível desatou a tocar na fúria estremunhada dos despertadores, e as janelas do
rápido das dez sucederam-se por detrás dos arbustos em quadrados cintilantes levando
consigo os operários dos Jerónimos aos bairros periféricos sem electricidade
nem água, com bêbedos e cadelas a ferverem raivas nas esquinas. Um par de guardas,
chamado pelo apito do cabo, transportou o féretro para o escritório de tijolo de
secretárias desfeitas encostadas às paredes, antigos ficheiros metálicos e ordens
de serviço e relações de naus desaparecidas afixadas a alfinete num painel de cortiça,
à esquerda da fotografia emoldurada do presidente da república que mirava a eternidade
na expressão de estupidez visionária dos heróis. Os guardas, de cócoras, aliviaram
os parafusos, esboroaram a placa de estearina que cintava a urna, desfizeram a canivete
as rendas do forro, um vento de amoníaco ascendeu do caixão e a boca do presidente
do retrato torceu-se na careta de dor de dentes com que por muitos anos
assistiu, por cima da ardósia, à tabuada das escolas.
Mal atraque o paquete com as minhas
coisas, garanti eu, juro que lhe pago uma lápide como deve ser. Perto do
candeeiro, mais nu sem o boné do que se estivesse despido, o cabo, a limpar as unhas
com um fosforo, aparentava-se aos pescadores de limos da vazante, embora de polainas
e cartucheira à cinta a fim de assassinar as enguias do rio. Ou os morcegos. Ou
os comboios. Ou a Torre de combater os castelhanos. Ou o pai que engolira o seu
chumbo em Loanda e se tornava devagarinho num lodaçal de tripas. Cara…, disse um
dos guardas, enjoado, a tapar o nariz com a manga de cotim. Espreite-me só este
radiozinho japonês, nosso cabo. Uma locomotiva atravessou de cambulhada o posto
de socorros a náufragos, tombando ficheiros e cadeiras, e agora olhavam-me os três,
escondidos por uma ponta do lençol, numa surpresa de virgens, de modo que
cresci um passo num sorrisinho humilde de desculpa: se os senhores pregassem o caixão
agradecia: é que não há nada para me sentar no cais enquanto o barco não chega.
A Residencial Apóstolo das Índias
não se situava no Largo de Santa Bárbara consoante o escrivão da puridade lhes
afiançara, mas no declive de um terreno perdido nas traseiras dos prédios entre
a embaixada da Itáliae a Academia Militar. Era uma casa arruinada no meio de casas
arruinadas diante das quais um grupo de vagabundos, instalado em lonas num
baldio, conversava aos gritos à roda de um chibo enfermo. Perguntou o endereço a
um mestiço de olhos sigilosos, a garotos que remexiam desperdícios com uma vara
e a um sobrevivente alcoólico de mares remotos abraçado a uma âncora oxidada, e
contornaram, a tropeçar, tábuas de andaime, paredes calcinadas, betões torcidos,
restos de muro e escadas de apartamentos sem ninguém, por onde à noite deslizavam
luzes de navegação nos intervalos das janelas. Um bando de rolas espantou-se num
coto de telhado, ergueu-se em leque e afundou-se num céu de chaminés.
Abaixo, na Rua de Arroios com obras
nos esgotos e um caterpillar a entupir o trânsito, ficavam capelistas decrépitas,
bares de prostitutas e merceariazinhas manhosas enxameadas de operários de pavio
de bagaço aceso no castiçal da mão. Um rato húmido de brilhantina escapou-se de
um caneiro, correu ao longo de degraus assoreados e esgueirou-se num monte de
cascalho. Os mendigos observavam-no de longe, em silêncio, debaixo de um pedaço
de tenda, e nesse instante viu as letras Residencial Apóstolo Das Índias pintadas
a amarelo ao lado de uma porta aberta ou do que havia sido uma porta e não era mais
do que uma espécie de cancela esburacada». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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