domingo, 2 de dezembro de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Entretanto chegavam cartas de Lisboa a pedir o regresso do Soberano... Mas em simultâneo, em Lisboa, era recebida a carta de abdicação e o filho…»

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A morte de Lancelot
«(…) Nunca se sentira tão infeliz na vida. Agora, longe do solo pátrio, aterrorizado, levava dias a rezar como se isso pudesse restaurar-lhe a confiança em si próprio e na sua pobre alma partida onde sir Galaad e Lancelor dormiam o pesado sono da morte, porque o cavaleiro que julgara ser e o Rei que se orgulhara da sua missão tinham expirado em terras de França. Quando Deus, enfim, levasse a sua alma, ela estaria pronta para percorrer as novas paragens. Era apenas uma questão de tempo. Assim pensava e o confessava, com lágrimas nos olhos, aos seus companheiros, mirando o Sol nascente daquele Outubro frio, o mesmo Sol que fazia refulgir os telhados, as muralhas e as colinas em redor da sua Jerusalém ansiada onde desejava acabar a sua peregrinação, o seu caminho de sofrimento e aprendizagem.

De Alcântara a Alcáçovas pelo Bem do Mundo
João prosseguia, porque as circunstâncias a isso o obrigavam a guerra, a guerra de defesa, enquanto o pai abdicava de tudo, perdido em terras de França, desaparecendo, como um garoto, de sob a tutela paterna ou familiar, e assim o conseguiu uma vez, até que gente do Rei de França o foi encontrar num albergue miserável. Monsieur de Lébret apanhara um tremendo susto pois pensou que algo de terrível teria acontecido ao infortunado Rei português, cada vez mais instável no seu juízo e nas suas emoções. Os portugueses que acompanhavam o Rei achavam-se perfeitamente perdidos de aflição e pouco ajudavam, pois um dos criados do Rei trouxera-lhes uma carta onde Afonso informava que partia para Jerusalém. Sozinho, pelas estradas, tal um pedinte, o neto de Filipa de Lencastre, arrostando com intempéries, a fome, os salteadores... Lá o encontraram numa aldeia, onde se acolhera e já se deitara. Um tal Leboeuf foi quem o achou, acordou-o, pôs-se de guarda à estalagem e mandou avisar os portugueses. O conde de Penamacor, mais morto que vivo, acorreu e trouxe o desalentado Monarca. Entretanto chegavam cartas de Lisboa a pedir o regresso do Soberano...
Mas em simultâneo, em Lisboa, era recebida a carta de abdicação e o filho, interdito, como foi seu costume toda a vida, recolheu-se a meditar sobre a missiva. Guardou segredo até se decidir. Quando se decidia, pedia conselho. Era um método de trabalho como outro qualquer porque o conselho de nada servia. Só ele decidia e punha na mesa as pedras do jogo que sempre entendeu pôr. Não lhe levo a mal. Quando se deseja ordenar o mundo é assim que se faz. E um homem que, aos vinte anos, decide criar um império, tem de arrumar a casa primeiro. Aquele tempo de aprendizagem retirara-lhe muitas dúvidas, concedera-lhe as certezas possíveis, mas aplainara-lhe o difícil caminho que teria de percorrer. João era por de mais inteligente e lúcido e percebeu que o pai apenas servia para entravar-lhe o caminho nos negócios públicos, um inepto do ponto de vista político, embora um incapaz bem-intencionado, puro honesto». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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