segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

No 31. As Naus. António Lobo Antunes. «A rapariga do caixote saiu para a noite a fumar, mascarada de boneca de mercearia de bairro, de bochechas de palhaço e de pescoço apertado numa estola leprosa»

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«(…) Desta feita não trazia atrás de si a comprida procissão das crias mas uma velha minúscula e descalça, de carrapito, cabelo apartado ao meio e pinta vermelha na testa, uma copa de jogar entre os arcos de capela das sobrancelhas grisalhas, e em cujas pupilas se refractavam tanques de crocodilos, silhuetas de piratas e as naus de João Castro sob um céu de catástrofe, fundeadas no mar de icterícia de Diu. Uma velha centenária trazida de Malabar ou de Timor com a primeira pimenta, amante de descobridores barbudos de tosse espessa de barrica, que conversava com o senhor Francisco Xavier na linguagem colorida dos ídolos de pau adormecidos sob árvores imensas nos seus pagodes de cobre, uma vetusta namorada de marujos que assistira impávida a abordagens ferozes, ulcerações de escorbuto, fumigações de bálsamos e melancolias de vice-reis, debruçados para as andorinhas nas varandas do poente. Não se preocupou muito com o miúdo ou comigo, ocupados a medir a densidade da noite pela pressa das corujas, mas avançou e recuou várias vezes na direcção da mulata observando-lhe a cara, o corpo, as pernas, e eu sentia-me na Ribeira ou no mercado de Cascais em manhãs de vozearia, papagaios, zangas, regateio, a assistir ao desembarque dos escravos, de penas de galo na nuca, por uma portinha das fragatas. O gordo accionou um interruptor de pêra e uma claridade súbita mostrou o átrio adornado em que nadavam percas, as pranchas soltas da ponte de comando do soalho, o reboco em pedaços, as feridas, nódoas e cicatrizes do estuque. Os vagabundos amornavam-se no baldio para dormir, arrebanhando jornais contra o orvalho do estio. Cães sem dono e arcebispos despadrados, de mitras de palhetas de vidro na cabeça, esvoaçavam em cambaleios de anjo rente à porta.
A rapariga do caixote saiu para a noite a fumar, mascarada de boneca de mercearia de bairro, de bochechas de palhaço e de pescoço apertado numa estola leprosa. O senhor Francisco Xavier, derramado num ângulo de balcão, copiava custosamente os nossos nomes num caderno pautado, na caligrafia gótica dos cabeçalhos de jornal. Um rafeiro uivou a cinquenta metros de nós e logo um segundo, mais distante, retorquiu das bombas de gasolina num lamento dorido, de goela ampliada pela concha de cimento da garagem com outras vozes lá dentro, de automobilistas, de carteiros de motorizada, de estofadores, do último mecânico a ensaboar-se a uma torneira cuja água se espalhava a brilhar pelas gretas do chão: sei como é por há anos ter trabalhado de aprendiz numa oficina em Sá da Bandeira entre os relentos do óleo, do cabedal e da estopa, a ver, sob o leite coalhado do flúor, electricistas comporem baterias em mesas fuliginosas, repletas de desperdícios e amperímetros.
Desisti porque o encarregado me apanhou o dedinho no casaco do bate-chapas à cata de uns trocozitos inocentes para um maço de cigarros, e me expulsou ao tabefe, rampa acima, até à chuva da rua. O indiano, subtraído pela fé dos evangelhos aos seus ídolos risonhos e às suas trovoadas monstruosas, veio vindo do balcão com a papada da barriga a baloiçar sobre o cinto: não tens as coroas, mocinho? Os ratos que conspiravam no forro do tecto desprenderam do alto uma placa de caliça, e nisto a velha, de boca aberta, pulou como um sapo aleijado, filou a mulata com as pinças das garras e arrastou-a para os túneis da Apóstolo das Índias, onde uma criança se esganiçava no salão decorado de azulejos do século XVII do primeiro piso, representando cenas de caça ou milagres de virgens. E dei comigo a pensar se o chibo dos mendigos dormiria de pé, de joelhos a tremerem nos cardos do baldio.
Nem a miséria de um tostãozinho te sobrou, ora confessa ao chefe, alegrou-se o senhor Francisco Xavier a aplicar-me palmadas exultantes nas costas, quando o vento trouxe da beira-rio o aroma de oleado heróico do hidroavião sem hélices, exposto, para além do Beato, no pontão dos pescadores de domingo, com os passageiros ainda sentados nas cadeiras conforme se podia espreitar pelo suor das vigias». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT