«(…) A deslocar-se no fundo e as gengivas do
borrego as do meu irmão ponto por ponto, feições que me observavam sem emoção
alguma e eu para o bicho tal como o meu pai para a minha mãe Não me deixes uma
vez que tudo me deixa, as empregadas da cozinha, o feitor, sobram os fantasmas
que me exigem entre eles num resto de cortina que não cessa de pronunciar o meu
nome, sobram estevas e estevas até aos penhascos da serra e cabanas de pastor
nas dobras do caminho, o assobio das piteiras e o metal dos arbustos raspando
as suas bagas de forma que aquele que não era o seu único neto a trazer a sela
e os arreios do estábulo pedindo Não me deixes não a uma mulher ou a um filho
porque não sou homem bastante para ganhar um filho, a um cavalo, o que não era
o meu único neto nem se sumiu no poço e devia sumir-se, de que me serve um
idiota a preparar o cavalo que pulava de banda experimentando um coice que se
desfez no ar conforme se desfez a casa em que apesar de igual tudo lhe falta hoje
em dia, o cavalo acabou por aceitar a manta e a sela, desenredei os estribos,
coloquei o freio esmurrando-lhe a cabeça (repare que eu um homem avô, informe
as pessoas que seu neto também, aponte-me a orgulhar-se Esse acolá afinal meu
neto também) o cavalo que demora a obedecer rodando no pátio habituado o cavalo
que demora a obedecer rodando no pátio habituado ao meu pai até sentir a mão
que lhe puxava a brida, eu com vontade de chamá-lo para que você Meu neto
também e os amigos de botão de cobre a fechar o pescoço (apetece-me escrever
mãe agora, mãe, mãe) a concordarem comigo, eu a deixá-los (Não me deixes) sem
precisar de vocês, para quê se ninguém existe, que faço eu com mentiras,
recordações, lápis de cor, brinquedos, nunca me visitavam no colégio dos padres
entre beatos horríveis na igreja gelada e recreios fúnebres com um padre a
desfiar o terço Na mansão de Deus não se corre de maneira que a gente parados
sob olaias e nenhuma visita, nenhum brinquedo, nenhum lápis de cor, idiotas
como eu que nunca seriam homens e a sineta e o estudo, contornei a casa a trote
a despedir-me dela, no pombal uma pluma ia roçando o chão e lá estava o poço e
o único neto (Esse acolá afinal meu neto também) que em breve ocuparia o lugar
do borrego a desfazer-se e a refazer-se nos limos, tivémo-los às dúzias na
altura em que a casa existia e nós não ainda, a casa sim, enorme, e um espectro
de manhã junto à cerca a dar instruções ao feitor, provavelmente não
instruções, provavelmente O meu neto O meu único neto provavelmente Há-de tomar
conta disto tudo um dia isto é tomar conta de lixo e do relógio sem números
indiferente ao tempo, o que importa o tempo que não existe também, existe o
silêncio que nem as patas do cavalo animam e o meu pai perto do Cristo de feira
Não me deixes sem ninguém que ficasse com ele numa ilusão de companhia, quem
lhe fez companhia até hoje senhor, não a minha mãe, não o meu avô, não eu, este
cavalo talvez, dedos que beijava ao sentar-se à mesa, nada e para quê pedir a
nada Não me deixes se o nada nunca esteve consigo, apenas fotografias de
criaturas tão irreais quanto nós, o meu irmão debruçado para o poço sem
compreender quem era e o meu avô satisfeito Os meus netos pronto a abraçar-me
se não fosse o cavalo a caminho da cerca e por um intervalo da cerca na
direcção da vila cujas luzes se acendiam uma a uma (quem as acenderia?) e ruas,
azinhagas, largos, o coreto onde dantes uma espécie de vida em que pardais
apenas, o burro do almocreve a descer a ladeira, a sumir-se numa vereda e ao
espreitar a vereda burro algum, um som de ferraduras que se desvaneceu logo,
lembro-me da minha avó Menino e a trancar-se dentro de si arrependida, o bule
na camilha e o Menino não eu, ela a interrogar-se surpreendida Menino? sem
alcançar o que Menino significava e não se incomode avó, foi o borrego a mudar
de posição nos limos, uma camisola e umas saias que nenhuma pessoa usou, coisas
de que esta casa era feita e eu a cruzar a cevada onde nunca cevada, terra
porosa, giestas, a sensação que uma criatura (o meu pai?) Não me deixes finalmente
em paz e a certeza que era a vila que se aproximava de mim, não o cavalo a
chegar, lá estavam os postigos abertos e a agitação das cortinas, as
fotografias que me esperavam contentes e ao juntar-me a elas defunto também (não
estive sempre defunto, não estarei sempre defunto?) alguém que não conheço a
perfumar os baús no andar de cima de um lugar que não há». In António Lobo
Antunes, O Arquipélago da Insónia, Publicações don Quixote, Leya, 2008, ISBN
978-972-203-694-8.
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