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O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Uma calúnia?, repetiu
Philippus num tom sarcástico. Não digais tolices, magíster. As vossas
referências a Aristóteles não se limitaram ao episódio de hoje, sabemo-lo muito
bem. E, além disso, também sabemos que possuís livros de filosofia natural. Libri
proibiti. Suger cresceu em raiva e em vergonha. Já não lhe restavam
dúvidas, tinham-lhe montado uma armadilha. Mas dizei-me por que razão me
encontro aqui? Quereis humilhar-me? Quereis confirmar o primado da teologia
sobre a ciência médica? Não, este é apenas um preâmbulo. O chanceler concedeu-lhe
um sorriso, deixando entrever um aspecto da sua verdadeira personalidade. Rolando
de Cremona, em comparação, era um pequeno gato indefeso. O motivo é
informar-vos de que as vossas infracções poderão custar-vos a excomunhão. É
inaudito, vossa paternidade!, protestou Suger. Parece-me uma medida excessiva.
Excessiva, não direi, mas evitável. Phiiippus balançou-se na cadeira, como se
fizesse uma manobra de diversão. Seria uma solução indolor.
O exílio, pontuou frei Rolando,
rápido como uma punhalada. Suger sentiu-se desfalecer. Não podeis pedir-me que
deixe o Studium de Paris..., exclamou com voz destroçada. Só de pensar nessa
hipótese teve a impressão de se precipitar num poço sem fundo, e por pouco não
caiu de joelhos. A ciência médica é a minha vida! É tudo para mim! Não
compreendeis? Se deixasse esta cidade... Não vos servirá de nada lamentar-vos,
admoestou-o Philippus, quase impassível. Tendes razão, e se jurasse nunca mais
divulgar a filosofia natural…
Já o fizestes uma vez, quando vos
foi entregue a cátedra. Ao que parece, não vos serviu de nada. E, no entanto,
como podeis pretender que me vá embora sem um pré-aviso razoável, depois de
tantos anos de trabalho... Pensai bem, interrompeu-o o chanceler. Se fôsseis
alvo de excomunhão, nunca mais iríeis encontrar um emprego digno dos vossos
conhecimentos, nem em Paris nem noutro sítio qualquer. Era verdade, pensou
Suger. Nenhuma escola acolheria um magíster ferido de anátema. Nem mesmo o mais
genial. Estava preocupado, mas insistir só iria piorar as coisas. Porque a
acusação era fundada. Como bem sabia, os decretos eclesiásticos proibiam
categoricamente que os livros de filosofia natural fossem lidos e comentados em
público ou em segredo, sob pena de excomunhão. Muitos outros mestres, antes
dele, tinham-se visto constrangidos a emigrar para Toulouse para poderem continuar
a ensinar Aristóteles sem serem perseguidos.
E, no entanto, não suportava a
ideia de se dar por vencido perante Philippus Cancellarius e os seus
lambe-botas. A frustração fazia-lhe dores de estômago e alimentava uma raiva
desdenhosa, mas era sobretudo o desespero que lhe apertava o coração. O que
faria dali em diante? Para onde iria? Envolto num tumulto de sentimentos,
avançou de repente e bateu com o punho na escrivaninha. Não penseis que isto
vai ficar por aqui!, gritou. Depois mordeu os lábios, lembrando-se, de repente,
de uma outra questão. Além disso, exclamou, não penseis que irei deixar de
exercer antes de ter preparado um dos meus discípulos para o bacharelato. Nem
pensar nisso, disse frei Rolando entre dentes. O vosso discípulo será entregue
a magísteres bem mais competentes. Deveis afastar-vos já.
Chega, padre, sede compassivo,
recomendou-lhe o chanceler com a sua calma fingida. Deixemos ao nosso magíster
esta magra consolação. Pensando bem, dentro em breve, em Paris, não haverá
lugar para quem ensina as mentiras de Aristóteles. Um sorriso abriu-se entre as
suas gordas bochechas. Suger de Petit-Pont é apenas o primeiro de uma longa
lista.
No limite das suas forças, o
médico conteve-se a custo para não se lançar contra os seus acusadores. Depois
reparou nos dois guardas que tinha atrás de si. Arrastaram-no para o exterior,
humilhando-o uma vez mais». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins
do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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