As
Princesas de Córdova. Silves, 1145
Córdova, Janeiro de 1145
«(…) Não foi necessário. À frente
da piscina de mercúrio, Abu Zhakaria espantou-se com a poça de sangue que viu no
chão. Martinho de Soure estava morto. Tinha o corpo trespassado por inúmeros golpes
e as veias do pescoço cortadas. Demorou, mas falou!, anunciou Ismar, com um sorriso
alucinado. Já sei o segredo do rei de Portugal, mas só vos conto se ficardes. Em
silêncio, Abu Zhakaria examinou o seu dilema. Se permanecesse ali, arriscava a vida
de Fátima, de Chamoa, de Mem, bem como a sua, pois Ibn Qasi podia não os poupar,
se tomasse o Azzahrat. Mas conhecer a verdade sobre o nascimento de Afonso Henriques
era também uma poderosa arma para o futuro. A vida é feita de escolhas, provocou
Ismar. Que preferis? Arriscar a vida para saber um segredo antigo, que pode destruir
Ibn Henrik? Ou fugir na ignorância, mas salvando a pele?
Incapaz ainda de uma decisão, Abu
Zhakaria recordou as palavras amargas da velha criada de Hisn Abi Cherif, proferidas
antes de ser degolada pela diabólica Raimunda.
Sois a estupidez na terra e perdereis
Córdova e Santarém! Ireis morrer em Lisboa!
De súbito, ouviu-se ao longe uma trombeta
e Ismar exclamou: eis que chegam as tropas de Ibn Qasi! Foi o medo que fez com que
Abu Zhakaria se decidisse. Não podia perder Fátima! Correu pelos corredores do magnífico
Azzahrat, enquanto ouvia nas suas costas as cínicas gargalhadas daquele príncipe
de Córdova que se tornara um facínora estúpido e desesperado.
Nesse dia, queridos filhos e netos,
hoje posso dizê-lo com inabalável certeza, a intriga de Compostela, esteve
muito perto da impossibilidade de um esclarecimento. Morto Martinho de Soure, o
fiel depositário do antigo segredo do conde Henrique era agora unicamente
Ismar, e bastava este ser aniquilado por Ibn Qasi para ninguém conhecer a verdade
sobre o primeiro rei de Portugal. Longe dali, em Coimbra, eu não sabia o quão próximo
desse sinistro abismo estivemos. É que, pior do que a existência de uma forte suspeita,
é ela nunca ser dissipada, permanecendo uma maldição irresolúvel.
Córdova, Fevereiro de 1145
As tropas de Ibn Qasi caminhavam pela
famosa circular de Córdova, construída pelos romanos, aproximando-se da antiga capital
do califado, onde Zaida nascera e a família reinara durante séculos. Na gaziva,
a rectaguarda do exército, a princesa, sentada numa carroça e abraçada à filha Maryam,
perguntou ao marido: há notícias de Sevilha?
Ibn Qasi garantiu-lhe que os aliados
de Ismar não tinham comparecido. O palácio do Azzahrat estava apenas guardado por
algumas centenas de homens, além de que não apresentava muralhas, pois fora
construído numa época em que um ataque à capital era impensável.
Filha, esses tempos vão longe.
Seria agora que regressaria a Córdova
para nunca mais a deixar? Zaida vivera poucos anos na cidade, fora feita prisioneira
dos cristãos em criança e nunca voltara. E não estava certa de que hoje seria esse
dia.
Filha, Ibn Wasir é um verme.
O marido explicou-lhe a
estratégia: seria ele a entrar no Azzahrat, enquanto Wasir e os seus cinco mil soldados
cercariam a cidade, até que esta se rendesse. Não o deixeis separar os dois
exércitos, é perigoso!, avisou ela.
Ibn Qasi encolheu os ombros e resmungou
que o medo era coisa de mulheres. Depois, partiu disparado, seguido pelos fiéis
ajudantes, deixando a princesa sozinha, apenas na companhia das escravas do
harém e de Maryam. Alá nos proteja..., murmurou Zaida. Pouco depois, ela começou
a ver os contornos do Azzahrat e agitou-se. Sentia imenso receio de que Ibn Wasir
os traísse, mas, agora que via o palácio, tinha ainda mais pavor de que o marido
matasse Mem!
Filha, ide ter com ele!
Mandou parar a carroça e desceu, com
Maryam pela mão. As escravas ainda a tentaram demover, mas ignorou-as. Montou um
cavalo, colocou Maryam à sua frente na sela e lançou-se a galope pela estrada, ultrapassando
as outras carroças. Quando chegou perto do palácio, o barulho das armas fê-la parar.
Para a direita dela, dezenas de homens de Ibn Qasi combatiam ferozmente os
soldados de Ismar. Viu ao longe o marido, em cima do cavalo, gritando ordens de
alfange ao alto. Pareceu-lhe que avançava». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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