O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa.
Junho de 1142
«(…)
Naquele Verão, os muçulmanos esperavam um ataque do imperador Afonso VII à
cidade de Cória, mas quando surgiram notícias de que Afonso Henriques ia cercar
Lisboa, auxiliado por uma frota de cruzados que se dirigia à Terra Santa, os
reis das taifas mouras de Badajoz, Sevilha e Granada dividiram-se novamente
sobre o que fazer, e só Abu Zhakaria respondeu à chamada.
Lá vou eu ajudá-lo outra vez.
Ismar, sempre ambicioso e rico,
mas também sempre pouco convincente na retórica, bem tentou relançar a aliança muçulmana
do passado, só que o emir de Badajoz considerava a distante Lisboa menos
importante do que Cória e decidiu defender esta última com a ajuda do seu
aliado sevilhano, deixando ao príncipe de Córdova a tarefa menor de rumar à
cidade na foz do Tejo.
Vai, não vai, lá acabou por ir...
Ismar hesitou, pois não reinava
em Lisboa, mas a sua malévola mulher, a inimitável Raimunda, impôs os seus caprichos.
Queria, queria e pronto! Subjugado por aquela magricela, a quem o asco
permanente a Afonso Henriques deixava tensos os músculos do pescoço, o marido
partiu de Córdova e marchou rapidamente para oeste, enviando uma mensagem a Abu
Zhakaria, a requerer ajuda imediata.
Por
isso também fomos a Lisboa...
Há três anos que os dois casais
não se viam e a desconfiança mútua mantinha-se, mas a ideia de derrotar Afonso Henriques
era tão apetecível que Fátima, esposa de Zhakaria e prima de Raimunda, aceitou
uma reconciliação apressada. Temos de os ajudar, lembrou o wali de
Santarém. Apesar das muitas baixas sofridas em Ourique, Abu Zhakaria ganhara o
respeito dos notáveis da sua cidade, que o consideravam responsável por ter
mantido os confrontos com os cristãos longe da povoação. Além disso, na região
mantinha-se viva a aura romântica do duo amoroso que ele formava com Fátima. Os
poetas andaluzes versejavam sobre a princesa de Córdova prisioneira dos
cristãos e o salvador que a tentara resgatar vezes sem conta. Mesmo não tendo o
casamento produzido filhos, o antigo fascínio perdurava, excepto na cabeça da
prima Raimunda.
Continua a mesma víbora...
Quando se reencontraram em
Lisboa, a acintosa Raimunda comentou que o estéril matrimónio de Zhakaria e Fátima
não passava de uma monumental farsa. A irmã de Zaida, em cujo rosto afilado
raramente se via um sorriso alegre, era seca como uma pedra, e o governador Abu
Zhakaria, um infeliz torturado pela tirana esposa. Odiai-vos um ao outro,
sentenciou Raimunda. Fátima empalidecera, Zhakaria cerrara os dentes e Ismar espantara-se.
Para minorar a azia geral, contrapusera à esposa: dizem o mesmo de nós. Também
eles não tinham filhos e as gentes de Córdova garantiam que não estavam
enamorados. Aquela era uma união feita de silêncios e muitos olhares pousados
na piscina de mercúrio do Azzahrat, como se ambos precisassem de se espelhar
para se convencerem a permanecer juntos. Somos dois casais especiais, rematara
Ismar. No caso deles, explicou que Raimunda nunca o queria na cama, nem o
beijava à frente de estranhos. A esposa sabia odiar, mas não amar, e Ismar
apenas a mantinha por perto porque ser casado com uma Benu Ummeya, bisneta do
último califa de Córdova, era a sua derradeira legitimidade.
A reunião entre os dois casais,
em Lisboa, foi, portanto, desagradável, mas uma inesperada situação esbateu o
mal-estar. Já no interior da almedina lisboeta, em finais de Maio, os quatro
deram-se conta de que a cidade se reorganizara, devido às campanhas moralistas
de um estranho bando de guerreiros. Chamam-lhes Mantos Vermelhos, explicou
Ismar. Não se tratava de um exército, preparado para combater os cristãos, ou
desejoso de o fazer. Uma coisa era aterrorizar a povoação com assassínios e proclamações
sonoras, outra era defender as muralhas. Bandidos e assassinos, lamentou-se
Ismar. Mal espalharam por Lisboa os seus exércitos, Zhakaria e ele perceberam
que iam suportar as despesas da resistência. Nem o velho wali, que ainda
dizia dever lealdade ao califa de Marraquexe, nem o alcaide, um pantomineiro,
mostraram vontade de organizar os habitantes». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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