sábado, 19 de janeiro de 2019

O Assassin de Lisboa (1142-1143). Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Apesar das muitas baixas sofridas em Ourique, Abu Zhakaria ganhara o respeito dos notáveis da sua cidade, que o consideravam responsável por ter mantido os confrontos com os cristãos longe da povoação»

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O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa. Junho de 1142
«(…) Naquele Verão, os muçulmanos esperavam um ataque do imperador Afonso VII à cidade de Cória, mas quando surgiram notícias de que Afonso Henriques ia cercar Lisboa, auxiliado por uma frota de cruzados que se dirigia à Terra Santa, os reis das taifas mouras de Badajoz, Sevilha e Granada dividiram-se novamente sobre o que fazer, e só Abu Zhakaria respondeu à chamada.
Lá vou eu ajudá-lo outra vez.
Ismar, sempre ambicioso e rico, mas também sempre pouco convincente na retórica, bem tentou relançar a aliança muçulmana do passado, só que o emir de Badajoz considerava a distante Lisboa menos importante do que Cória e decidiu defender esta última com a ajuda do seu aliado sevilhano, deixando ao príncipe de Córdova a tarefa menor de rumar à cidade na foz do Tejo.
Vai, não vai, lá acabou por ir...
Ismar hesitou, pois não reinava em Lisboa, mas a sua malévola mulher, a inimitável Raimunda, impôs os seus caprichos. Queria, queria e pronto! Subjugado por aquela magricela, a quem o asco permanente a Afonso Henriques deixava tensos os músculos do pescoço, o marido partiu de Córdova e marchou rapidamente para oeste, enviando uma mensagem a Abu Zhakaria, a requerer ajuda imediata.
Por isso também fomos a Lisboa...
Há três anos que os dois casais não se viam e a desconfiança mútua mantinha-se, mas a ideia de derrotar Afonso Henriques era tão apetecível que Fátima, esposa de Zhakaria e prima de Raimunda, aceitou uma reconciliação apressada. Temos de os ajudar, lembrou o wali de Santarém. Apesar das muitas baixas sofridas em Ourique, Abu Zhakaria ganhara o respeito dos notáveis da sua cidade, que o consideravam responsável por ter mantido os confrontos com os cristãos longe da povoação. Além disso, na região mantinha-se viva a aura romântica do duo amoroso que ele formava com Fátima. Os poetas andaluzes versejavam sobre a princesa de Córdova prisioneira dos cristãos e o salvador que a tentara resgatar vezes sem conta. Mesmo não tendo o casamento produzido filhos, o antigo fascínio perdurava, excepto na cabeça da prima Raimunda.
Continua a mesma víbora...
Quando se reencontraram em Lisboa, a acintosa Raimunda comentou que o estéril matrimónio de Zhakaria e Fátima não passava de uma monumental farsa. A irmã de Zaida, em cujo rosto afilado raramente se via um sorriso alegre, era seca como uma pedra, e o governador Abu Zhakaria, um infeliz torturado pela tirana esposa. Odiai-vos um ao outro, sentenciou Raimunda. Fátima empalidecera, Zhakaria cerrara os dentes e Ismar espantara-se. Para minorar a azia geral, contrapusera à esposa: dizem o mesmo de nós. Também eles não tinham filhos e as gentes de Córdova garantiam que não estavam enamorados. Aquela era uma união feita de silêncios e muitos olhares pousados na piscina de mercúrio do Azzahrat, como se ambos precisassem de se espelhar para se convencerem a permanecer juntos. Somos dois casais especiais, rematara Ismar. No caso deles, explicou que Raimunda nunca o queria na cama, nem o beijava à frente de estranhos. A esposa sabia odiar, mas não amar, e Ismar apenas a mantinha por perto porque ser casado com uma Benu Ummeya, bisneta do último califa de Córdova, era a sua derradeira legitimidade.
A reunião entre os dois casais, em Lisboa, foi, portanto, desagradável, mas uma inesperada situação esbateu o mal-estar. Já no interior da almedina lisboeta, em finais de Maio, os quatro deram-se conta de que a cidade se reorganizara, devido às campanhas moralistas de um estranho bando de guerreiros. Chamam-lhes Mantos Vermelhos, explicou Ismar. Não se tratava de um exército, preparado para combater os cristãos, ou desejoso de o fazer. Uma coisa era aterrorizar a povoação com assassínios e proclamações sonoras, outra era defender as muralhas. Bandidos e assassinos, lamentou-se Ismar. Mal espalharam por Lisboa os seus exércitos, Zhakaria e ele perceberam que iam suportar as despesas da resistência. Nem o velho wali, que ainda dizia dever lealdade ao califa de Marraquexe, nem o alcaide, um pantomineiro, mostraram vontade de organizar os habitantes». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                                                                                                    
Cortesia da CasadasLetras/JDACT