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O Algarismo e o Número
«(…) A catedral de Chartres surgiu entre os campos
de trigo, já amarelecidos pelo estio, como o esqueleto de uma enorme baleia varada
numa praia de dunas douradas. À distância, o templo parecia completamente acabado.
Os arcobotantes destacavam como as cavernas de um navio ou as gigantescas
costelas de um animal fabuloso. Conforme dom Maurício e os seus acompanhantes se
aproximavam, a catedral de Chartres, situada no alto de uma colina, parecia crescer
para o céu, agudizando o seu perfil estriado e difuso.
Aquele era o último dia da Primavera, um dia
muito assinalado, pois a nova catedral de Chartres tinha sido construída como um
verdadeiro monumento à luz, e o sol alcançaria no dia seguinte o seu ponto mais
alto de todo o ano. O bispo de Burgos, dizeis?, perguntou o estalajadeiro a quem
dom Maurício, o abade de Arlanza e os quatro soldados da escolta pediram pousada.
Sim, Burgos, em Castela. Ouvi falar dessa cidade; alguns dos meus clientes
fizeram a peregrinação ao túmulo do apóstolo Santiago de Compostela. Pareceis um
senhor importante, mas perdoai-me, se vos peço que me pagueis adiantado. Maurício
indicou ao abade de Arlanza que assim procedesse; a cara do estalajadeiro iluminou-se
quando viu o brilho prateado das moedas.
Dirigiram-se de imediato à catedral, que, tal
como lhes havia parecido ao longe, estava praticamente terminada. Afinal, a catedral
está quase acabada. Acreditais, Senhor Abade, que alguma vez teremos uma como esta
em Burgos? Se vos propuserdes a isso, Eminência, certamente que sim. Os dois clérigos
entraram na catedral. A tarde começava declinar e o sol rasante inundava o espaço
com uma luz irisada. Através dos janelões, os feixes luminosos desdobravam-se por
todo o interior do templo, numa catarata furta cores.
O bispo Maurício não pôde reprimir a emoção.
Uniu as mãos, levantou os braços ao céu e caiu de joelhos no meio da nave central.
Os seus olhos pasmados contemplavam a sinfonia de cores filtradas pelos vidros dos
janelões como se estivessem a presenciar o primeiro amanhecer do universo. Uma personagem
vestida com roupas talares aproximou-se dos castelhanos. Sois estrangeiros?, perguntou-lhes
em latim. Somos castelhanos, respondeu o abade de Arlanza, enquanto o bispo Maurício
continuava de joelhos, de braços levantados, olhos assombrados e boca aberta. Sua
Eminência, o bispo de Burgos, e quem vos fala, o abade de San Pedro de Arlanza.
Eu sou Jean de la Tour, cónego da catedral de Chartres. Sede bem-vindos à casa de
Deus e de sua Madre Santíssima. Mas Maurício não ouvia nada, todos os seus sentidos,
naquele momento, estavam absortos na luz da catedral.
E o que vos traz por cá, senhor bispo? O cónego
la Tour acompanhara Maurício e o abade de regresso à pousada, e estes tinham-no
convidado a cear com eles. Vamos buscar a futura esposa do rei de Castela, a princesa
Beatriz da Suávia. Pois haveis-vos desviado do vosso destino. Decidimos visitar
antes Paris e Chartres, para contemplarmos as suas catedrais. Tenho intenção de
construir uma igreja em Burgos, neste novo estilo. Essa é agora a ideia da maioria
dos bispos cristãos. Desde que o abade Suger encomendara a construção da sua nova
igreja em honra de São Dionísio e indicara ao seu mestre-de-obras que o templo devia
ser a casa da luz, todos desejavam imitar Suger.
Vós sois clérigo, um
ministro do Senhor, deveis saber bem que se Deus é a luz, a sua casa tem de ser
a casa da luz. Se achardes por bem vir amanhã à catedral, comprová-lo-eis. Amanhã?
Precisamente amanhã. Se o que buscáveis era luz, haveis chegado no melhor dia do
ano para isso. Espero-vos um pouco antes do meio-dia na entrada ocidental. Sereis
testemunhas de algo extraordinário, se o dia não amanhecer encoberto». In
José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas,
Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT