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Milão.
1243
«(…)
Embora já tivesse atravessado por
várias vezes aquela entrada, Matthew não
parava de se surpreender com o contínuo vaivém de gente, carros, cavalos,
mulas, envolvidos, todos eles, numa actividade incessante e frenética. A
vozearia dos carregadores misturava-se à dos comerciantes assomados às portas
das lojas, ao latido dos cães presos, às gargalhadas estridentes dos criados
carregados de cestos cheios de comida. De cada vez que entrava na cidade, o
frade não parava de pensar quão mais tranquila era a vida em San Simpliciano, o
mosteiro onde vivia há já um tempo. O edifício situava-se do lado de fora das
muralhas mas relativamente próximo delas e muito perto da Porta Comacina, mas
tanto lá como aqui, os dias eram marcados pelo trabalho: os monges e os seus rendeiros ocupavam-se do funcionamento dos
moinhos, do tratamento dos animais, da tosquia da lã, das sementeiras e dos
enxertos, das pontes que tinham de construir sobre os canais, das estradas que
deveriam cobrir com saibro. E, no entanto, apesar do fervor laborioso das
pessoas, o ar, os cheiros, os rumores eram os mesmos dos do campo; fora exactamente
esta atmosfera de paz e tranquilidade, semelhante, nos ritmos, àquela em que
Matthew vivera durante tantos anos, no seu primeiro mosteiro de St. Albans na longínqua
Inglaterra, que o haviam convencido a ficar em Milão. Em todos os mosteiros
onde se acolhera ao longo da sua viagem, desde o vale Augusta até à planície, a
desconfiança face à sua pessoa manifestara-se de uma forma mais ou menos
explícita, seguramente facilitada também pelo clima de suspeição que, nesses
últimos anos, envolvia qualquer estrangeiro. Muitas haviam sido as batalhas
entre o imperador Frederico e os senhores daquelas terras férteis e ricas, para
os habitantes e até mesmo os próprios religiosos poderem confiar em
qualquer pessoa que falasse um outro idioma: qualquer forasteiro, incluindo um
frade, podia ser um espião enviado pelo legado pontifício ou pelo próprio
imperador para desvendar planos, tramas e traições.
Matthew,
que pensava que o seu já longo tempo de vida lhe permitia desembaraçar-se de
estratégias e acontecimentos provocados por outros, ficara estupefacto ao
constatar as difíceis condições das gentes que povoavam as terras que fora
encontrando pelo caminho. Quão mais limitadas e simples não haviam sido as
escaramuças entre os senhores feudais do vale Augusta comparadas com esta
infinita e tormentosa guerra de planura que opunha o imperador, a Igreja de
Roma e os governos das cidades! Frei Stephen, camerlengo junto do Hospital Scotorum,
próximo de Vercelli, onde Matthew estivera durante o Inverno precedente,
passara longas horas a explicar-lhe as razões daquele conflito, mas, apesar do
seu esforço, nem tudo se lhe mostrara claro. O que levara o papa a excomungar o
imperador, o que levara algumas cidades a apoiá-lo enquanto outras o
contestavam, que papel poderia ter a vontade de Deus em todas estas disputas
geradoras de carnificinas inúteis? E, no entanto, Federico, pelo que lhe haviam
contado, mostrara-se um soberano liberal, amante das letras e das artes e
promotor de éditos magnânimos: como era, então, possível que o próprio
pontífice estivesse contra ele? O abade de San Simpliciano, Arnolfo Sala, por
conta de quem, neste momento, estava a chegar a esta cidade, tentara explicar-lhe
a situação particular de Milão: esta gente, dissera-lhe, sente-se livre e quer
viver sem senhores. A Comuna nascera para isto, muitos anos antes, e a partir
de então os Milaneses não iriam tolerar o jugo de um novo imperador: já lhes
bastara a experiência tão penosa da submissão a um outro Federico, que, quase
um século antes, tinha arrasado a cidade, impondo o seu poder pela força. A
própria Igreja, acrescentara Arnolfo, tivera e continuava a ter a sua
quota-parte de responsabilidade nestas disputas: o papa não tinha menos
aspirações quanto ao poderio de toda a Itália
do que aquelas que o imperador nutria, enquanto a Igreja metropolita de
Milão, pelo seu lado, procurava livrar-se de compromissos, com o objectivo
preciso de salvaguardar a sua própria autonomia. Como era óbvio, numa situação
de conflito permanente como esta, quem mais sofria sempre eram os mais
miseráveis. Frei Matthew tinha visto camponeses privados das suas próprias
terras serem enviados para combater contra este ou aquele inimigo, aldeias
inteiras incendiadas, mulheres e crianças mortas barbaramente, frades e padres
em fuga rumo a outros mosteiros. E logo agora, num momento tão delicado, o
abade de San Simpliciano o havia encarregado, a ele, humilde frade inglês, do
cumprimento de uma missão tão secreta e complexa: Justificara-se afirmando que,
exactamente por ser forasteiro e, portanto, completamente insuspeito de
pertencer a esta ou àquela facção, iria poder indagar, mais discretamente do
que qualquer outro, sobre o caso que tanto o preocupava». In Valeria Montaldi,
O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.
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