terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Os Reféns. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Pela primeira vez desde que fora aclamado rei em Ourique, Afonso Henriques viu nascer contra si uma dissidência. Liderados pelo irado Gonçalo Sousa…»

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Os Reféns. 1147
Lisboa, Setembro de 1147
«(…) Dando-lhe a mão, recordou o quanto sofrera ao lado de Ibn Qasi. Por sorte, escapara, mas ainda se sentia muito triste e só agora a esperança lhe voltava ao coração. Vejo um futuro para mim e para a minha filha. Um sorriso matreiro iluminou-lhe o rosto. Quereis viver na minha corte?, perguntou o rei. A viúva de Ibn Qasi aceitaria dar-se, desde que ele a tomasse a seu cargo. Debaixo da sua asa, renasceria. Contudo, tinha um desejo prévio para realizar em Lisboa. Deixai-me ir ver Fátima!, pediu ela. Afonso Henriques olhou para ela com alguma preocupação, mas depois uma ideia ocorreu-lhe. Para convencer a princesa, contou-lhe o que se passava em Lisboa, a dureza do cerco e a rebeldia dos portucalenses, bem como a intriga de Compostela, com que o minavam os inimigos. Por fim, revelou-lhe quem era Orimar. Ramiro?, espantou-se a princesa.
O rei explicou-lhe também que, aquando da rendição das cidades, era costume os sitiados entregarem reféns. Vou exigir cinco a Lisboa, anunciou. Zhakaria, Fátima, Raimunda, Ramiro e o último dos feddayins. Minha irmã está a morrer…, lembrou a princesa. Como quem já pensara nisso, o rei ripostou-lhe: tomai o lugar dela. Ninguém se aperceberá! Os reféns seriam entregues a Arnaldo Aerschot e a Cristiano Gistelles, e Zaida substituiria a moribunda irmã. Os cruzados não lhe fariam mal, por respeito a Afonso Henriques, e a princesa teria apenas de se manter atenta a Raimunda. Com Ramiro também a morrer, só a bruxa conhecia o esconderijo da Lança de Cristo. Estou certo de que conseguireis vigiá-la! A princesa fez-lhe festas na mão, agradada. Farei o que desejardes, garantiu.
Nessa noite, Zaida dormiu na tenda do rei e, na manhã seguinte, Afonso Henriques comentou comigo que o casamento com Ibn Qasi a tornara menos alegre, o que era uma pena, mas também mais submissa, o que lhe agradava. Agora, percebe melhor qual é o seu lugar. Concluí, em silêncio, que, viúva e depois de tanto sofrer, Zaida perdera as ambições de reinar em Córdova, mas não a lucidez. Ser amante do rei de Portugal era bem melhor do que casar com Mem. A princesa moura era um encanto de mulher, mas nunca descurava os seus interesses pessoais. Perdido um emir, abria-se a um rei.
Contudo, queridos filhos e netos, a sua inesperada chegada a Lisboa acelerou um dominó devastador. Gonçalo Sousa fora o primeiro enamorado de Zaida, muitos anos antes, mas perdera-a. Ao vê-la aninhada no regaço do rei de Portugal, uma dor de cor… antiga e dolorosa regressou, multiplicando a sua fúria.

Lisboa, Outubro de 1147
Pela primeira vez desde que fora aclamado rei em Ourique, Afonso Henriques viu nascer contra si uma dissidência. Liderados pelo irado Gonçalo Sousa, enciumados com a primazia dada aos cruzados, insatisfeitos com as promessas de benesses que não chegavam, cansados de uma luta que durara o Verão inteiro, um relevante número de nobres de Entre Douro e Minho e de Bragança decidiu regressar às suas terras, levando dois terços do nosso exército». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT