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Canto 1: sonho de Mamude, jovem sultão de
Cambaia.
Canto Primeiro
[...]
Estava o mundo todo envolto em sombra,
De luzentes estrelas o céu cheio;
Em grave e doce sono transportados
Os trabalhados corpos dos que
vivem;
As feras, nas montanhas e
desertos,
Em profundo silêncio descansavam;
Não repousa Mamude; desvelado
Está, que nunca os olhos sono
admitem,
Mas um cuidado a outro encontra e
fere,
Crescendo por momentos a milhares;
Revolve na torvada fantasia
Um grão tropel d'acordos diferentes;
Parece-lhe já ver, bem sucedidos,
Os casos que inda não vê começados:
Um pensamento vão, uma esperança
De natural soberba acompanhada,
Já deste incerto bem o
certificam.
Estando assi consigo vacilando,
Entra o sono quieto e invisível,
Prende com subtil manha os
desvelados
Olhos e liga os membros de
Mamude.
Cessaram, por então, os
pensamentos,
E o seu ânimo teve algum alívio.
Não tardou muito espaço que o mancebo,
Sepultado em profundo e doce sono,
Lhe parecia ver uma disforme,
Horríbel, infernal, triste
figura,
A cabeça de bíboras cercada
E rebuçada com sangrentas toucas.
O nome desta fúria era Discórdia.
Que até nos paternais peitos acende
Ódios e dissensões, guerras e mortes.
Chega-se a fera sombra ao rei
dormido
E com rigor lhe diz estas
palavras:
Qua1 coração será tão de
diamante,
Quais entranhas de hircano, fero
tigre,
Que não se movam, vendo a crua
morte
Que ao grão sultão Baudúr se deu sem
causa?
Como sofrerás tu tão grande ofensa?
Como não andarás sempre corrido,
Se não vingares morte de um tal homem
Em tudo tão perfeito e acabado?
Sofrerás. porventura, que uma
gente
Peregrina,
estrangeira e tão soberba
Mate um tão grande rei dentro em
seu reino?
Não és tu neto seu? Que mais aguardas?
Que fazes, que não vingas tal desonra?,
[...]
In Jerónimo Corte-Real, colecção
Tesouros da Literatura e da História, Obras de Jerónimo Corte-Real, HALP, FCG, Lello
& Irmãos Editores, Porto, 1979.
Cortesia de LelloeI/HALP/JDACT