sábado, 2 de fevereiro de 2019

Catarina de Habsburgo. Rainha de Portugal. Yolanda Scheuber. «Hoje, desde que a alvorada se anunciou silenciosa sobre um céu cinzento de chumbo e que o dia avançou com preguiça, tentando libertar os seus raios de luz…»

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«(…) Todas as manhãs, quando me levanto, vou pressurosa pelo caminho da galeria alta para os ofícios religiosos da sua bela capela, mas nunca vivi nele um dia igual a este. Será talvez a nostalgia dos anos. Quanto mais avanço na velhice, mais recordo o tempo da infância, esse período claro da minha vida em que não sentia desamparo porque tudo estava nas mãos de minha mãe. ... O que teria sido de mim sem ela?, pergunto-me hoje com a mesma incerteza com que ela mo perguntava então. Ela dizia-me que não teria sabido o que fazer se eu não tivesse nascido e fazia votos para seguir os passos de meu pai, e sei que eu também não poderia ter resistido à minha vida sem o seu constante apoio e a sua presença, pois a companhia de minha mãe também substituiu a de meu pai. O que teria sido de mim sem ela, se nunca pude conhecer meu pai... Nem conseguia imaginá-lo galhardo e alegre como todos afirmavam que era. Não conseguia imaginá-lo criança de olhos ternos e amendoados como era o meu irmão Fernando, nem ver o seu cabelo emaranhado. Não conseguia avistá-lo erguido no seu cavalo, elegante e airoso, porque o imaginava sempre morto, dentro do seu caixão fechado. Cheirando a fragrante incenso e a cera das velas consumidas juntamente com o fumo resinoso das tochas. Não me impressionava nessa altura que se tivesse determinado que seu corpo fosse enterrado em Espanha e que o seu coração fosse enviado para a Flandres num cofre de ouro forrado a veludo, escoltado por uma procissão de flamengos, o que me angustiava era já não estar ao nosso lado, nunca poder vir a conhecê-lo ou abraçá-lo.
Hoje, desde que a alvorada se anunciou silenciosa sobre um céu cinzento de chumbo e que o dia avançou com preguiça, tentando libertar os seus raios de luz por entre as fendas das nuvens, o esplendor das velas foi-se apagando mansamente, consumido pelas horas. Essas horas implacáveis que não param diante de muros ou distâncias e que chegam, presunçosas, para cumprir com os prazos que assinalam o fim de cada coisa. Esses prazos que se agitam no nosso coração ao evocar recordações longínquas, aqueles dias que já foram e já não são, avisando-nos, ao ritmo inalterável de um relógio próximo, a sua decisiva chegada e a sua inadiável partida. Ainda nem chegaram e já têm de se ir embora, e assim continuam numa interminável e incansável procura de um presente que, logo que se aflora, se transforma em passado.
Só possuo este minuto, nem os que passaram nem os que hão de vir serão meus. Noto que o tempo corre depressa, com o único intuito de me acordar, de me fazer notar com toda a sua crueza que me encontro de passagem/ que estou limitada a um determinado tempo, em que terei de viver pela graça que o destino me conceder. E assim, como a abençoada chuva do Inverno que molha lentamente a horta e os jardins, a minha memória detém-se em cada vivência, sem que possa evitá-lo, recaindo sobre os momentos importantes da minha vida, recordando-os. Vida pela qual peregrinei até chegar hoje ao lugar onde me encontro, através de caminhos desconhecidos, marcados pelos contrastes mais extremos que foram gravando na minha alma os matizes mais intensos dos prazeres e das dores.
As luzes da madrugada surpreenderam-me acordada, enquanto lamentava a falta dos meus entes mais queridos. Abertos os olhos e sem conseguir conciliar o sono, contemplei sem cansaço o lavrado do tecto, firmemente esculpido em carvalho claro, em cada quadrilátero perfeito, uma rosa inclina-se para mim prestes a soltar-se do caule, e é tal o realismo das suas formas que, ao observar o conjunto de baixo, me parece detectar um ramo imenso que espalha o seu perfume pelos ares». In Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo, Rainha de Portugal, Ediciones Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2013, ISBN 978-972-462-077-0.
                   
Cortesia de CdasLetras/JDACT