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«(…)
Vendemos bichos amestrados a estátuas, reformados barbudos de pedra para
repuxos, soldados desconhecidos a domicílio. O homem cessara de a ouvir: o
corpo dele mantinha a curva obsequiosa de ponto de interrogação na aparência
atento de terceiro oficial a despacho, a testa, para onde todos os acidentes
geográficos do seu rosto convergiam como passantes para um epiléptico a
lagartixar na calçada, amarrotava-se de asséptico interesse profissional, a
esferográfica aguardava a ordem estúpida de um diagnóstico definitivo, mas no
palco dos miolos sucediam-se as imagens vertiginosas e confusas em que o sono
se prolonga manhã fora, combatido pelo sabor do dentífrico na língua e a falsa
frescura publicitária da loção de barbear, sinais inequívocos de se esbracejar
já, instintivamente, na realidade do quotidiano, sem espaço para a cambalhota
de um capricho: os seus projectos imaginários de Zorro dissolviam-se sempre,
antes de começarem, no Pinóquio melancólico que o habitava, a exibir a
hesitação do sorriso pintado sob a linha resignada da sua boca autêntica. O
porteiro que todos os dias o acordava a golpes teimosos de campainha
afigurava-se-lhe um são bernardo de barril ao pescoço a salvá-lo in extremis do
nevão de um pesadelo. E a água do chuveiro, ao descer-lhe pelos ombros,
levava-lhe da pele o suor de angústia de uma desesperança tenaz. Desde que se
separara da mulher cinco meses antes que o médico morava sozinho num
apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo imobilizado de
nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado por detestar os
relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdica de um
coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre
as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas de
fotografarem túmulos barrocos de reis, exibindo as sardas esqueléticas dos
decotes numa arrepiante audácia de quakers renegadas. Estendido nos lençóis sem
descer a persiana o psiquiatra sentia os pés tocarem o escuro do mar, diferente
do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do Barreiro
introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes.
Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as
andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha
vazia da lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no
soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do álcool sem
amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiças. E acabava por
concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando a
sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria
preferido nunca conhecer.
Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil como os
bibelots que as tias-avós distribuem por saletas impregnadas do odor misto de
urina de gato e de xarope reconstituinte, e a
partir dos quais refazem a minúscula monumentalidade do passado familiar à
maneira de Cuvier criando pavorosos dinossauros de lascas insignificantes de
falangetas, que a recordação das filhas lhe tornava à memória na insistência de
um estribilho de que se não lograva desembaraçar, agarrado a ele como um
adesivo ao dedo, e lhe produzia no ventre o tumulto intestinal de guinadas de
tripas em que a saudade encontra o escape esquisito de uma mensagem de gases.
As filhas e o remorso de se ter escapado uma noite, de maleta na mão, ao descer
as escadas da casa que durante tanto tempo habitara, tomando consciência degrau
a degrau de que abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma
complicada teia de sentimentos tempestuosos mas agradáveis, pacientemente
segregados. O divórcio substitui na era de hoje o rito iniciático da primeira
comunhão: a certeza de amanhecer no dia seguinte sem a cumplicidade das
torradas do pequeno-almoço partilhado (para ti o miolo para mim a côdea)
aterrorizou-o no vestíbulo. Os olhos desolados da mulher perseguiam-no pelos
degraus abaixo: afastavam-se um do outro como se haviam aproximado, treze anos
antes, num desses agostos de praia feitos de aspirações confusas e de beijos
aflitos, no mesmo turbilhonante e ardente refluxo de maré. O corpo dela
permanecia jovem e leve apesar dos partos, e o rosto mantinha intactos a pureza
dos malares e o nariz perfeito de uma adolescência triunfal: junto dessa beleza
esguia de Giacometti maquilhado achava-se sempre desajeitado e tosco no seu invólucro que
começava a amarelecer de um Outono sem graça. Havia alturas em que lhe parecia
injusto tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um
sofrimento sem razão. E perdia-se entre os seus joelhos, afogado de amor, a
gaguejar as palavras de ternura de um dialecto inventado». In António
Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1973,1983, Publicações dom Quixoye, Bis,
Grupo Leya,1983, ISBN 978-989-660-091-4.
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