O
Mistério da Foz
«(…)
Ora, esse era um sentimento perigoso, à época, e trouxe-lhe grandes dissabores.
O primeiro deles foi uma pendência com um tal Leonardo, o homem que tinha assassinado
o marquês de Loulé à paulada, em Salvaterra de Magos, ao que constava, a mando ou
com a anuência do próprio infante Miguel. O crime horrorizou os homens bem formados
mas nada se fez para o castigar, até ao dia em que o tal Leonardo, convencido da
sua impunidade, decidiu gabar-se do que fizera à porta de uma taberna e Mateus,
que por ali passava em patrulha, lhe deu voz de prisão. O homem resistiu, armou
zaragata, mas foi dominado e arrastado até ao quartel da Rua do Salitre.
Aquela
acção policial foi louvada pelos superiores e pela imprensa liberal, porém,
logo se moveram influências na penumbra dos gabinetes e Leonardo foi solto. Nas
semanas seguintes Mateus teve por diversas vezes de se bater para escapar a emboscadas
que lhe armavam nas vielas de Lisboa. Numa delas foi ferido por uma feia
punhalada, perdeu muito sangue e esteve várias semanas hospitalizado. Ainda que
tivesse conseguido salvar a vida, ficou bem ciente de que era uma pessoa marcada
para os partidários do então exilado Miguel. E era-o numa cidade onde matar um
homem se fazia por dez réis de mel coado.
Essa
evidência devia ter feito dele uma pessoa mais discreta e cautelosa. Mas Mateus
tinha no cumprimento do dever a bússola orientadora da sua vida e não mudou de atitude
nem de caminho. De volta ao serviço continuou a actuar contra as violências e os
abusos, viessem de onde viessem. Até certa altura, os sucessivos comandantes da
Guarda, que estimavam o seu zelo e a sua rectidão salomónica, deram cobertura aos
seus actos, mas em 1828 tudo isso mudou quando Miguel, regressado a Portugal, usurpou
o trono e dissolveu as Cortes. A violência ganhava asas, o cacete fervia nas ruas,
e começaram a multiplicar-se pelo reino fora as agressões aos malhados
(liberais), as suas prisões arbitrárias e, até, as suas execuções. O tio de
Trancoso, um dos mais notórios liberais da Beira, foi preso, os seus bens confiscados
e acabou por morrer na prisão de Almeida.
Mateus
sentiu a morte do tio como uma nova tragédia na sua vida, todavia não quis entendê-la
como um sinal de alarme. Ao invés de muitos outros liberais que fugiram do
reino, ele recusou a emigração não porque tivesse medo da vida noutro país, mas
porque o dever lhe impunha que permanecesse ali. Não sabia ao certo que dever
era esse. Talvez uma obrigação para com a imagem que tinha de si próprio; talvez
o respeito da memória e da vontade do tio. O facto é que ficou num Portugal
onde já não havia espaço para pessoas como ele. Temerário e teimoso, voluntariamente
indiferente às nuvens negras que se acumulavam no horizonte, persistiu na sua
já lendária rectidão e foi castigado por viárias vezes, despromovido para o posto
de tenente e transferido para o Porto, onde não voltara desde a tragédia da
Ponte das Barcas.
Chegou
à cidade na manhã em que se enforcavam dez liberais. As forcas tinham sido
levantadas na Praça Nova e os tambores rufavam, cavernosos, tenebrosos,
chamando as pessoas ao suplício. Estava um dia cinzento e caía uma chuva miudinha,
que não demovia o povo imenso que se juntara na praça, seguindo tudo com olhos ávidos
e cruéis. Na orla daquele recinto apinhado dezenas de senhoras guarneciam as janelas
de primeiro e segundo andar, espreitando por detrás de leques, num misto de horror
e de curiosidade mórbida.
E Mateus
ali ficou a cumprir a sua primeira missão policial no Porto, de dentes
cerrados, com a roupa encharcada colada ao corpo, maldizendo a sua índole demasiado
respeitadora da lei e a estúpida escolha da carreira militar. Foi nesse estado
de desconforto físico e de revolta interior que viu os condenados descerem da
Relação, em cortejo, carregando as tumbas da Misericórdia que lhes acolheriam os
cadáveres. Lenta e metodicamente as forcas desempenharam a sua negra função e à
uma da tarde a tragédia estava consumada. Depois de mortos, as cabeças dos
enforcados foram separadas do tronco para serem pregadas e expostas em postes
altos, como ele já vira fazer em Lisboa aos estudantes enforcados no Cais do Tojo.
E, ao presenciar aquele espectáculo macabro, sentiu uma angústia indizível». In
João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014,
ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PortoEditora/JDACT