terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «… um tal Leonardo, o homem que tinha assassinado o marquês de Loulé à paulada, em Salvaterra de Magos, ao que constava…»


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O Mistério da Foz
«(…) Ora, esse era um sentimento perigoso, à época, e trouxe-lhe grandes dissabores. O primeiro deles foi uma pendência com um tal Leonardo, o homem que tinha assassinado o marquês de Loulé à paulada, em Salvaterra de Magos, ao que constava, a mando ou com a anuência do próprio infante Miguel. O crime horrorizou os homens bem formados mas nada se fez para o castigar, até ao dia em que o tal Leonardo, convencido da sua impunidade, decidiu gabar-se do que fizera à porta de uma taberna e Mateus, que por ali passava em patrulha, lhe deu voz de prisão. O homem resistiu, armou zaragata, mas foi dominado e arrastado até ao quartel da Rua do Salitre.
Aquela acção policial foi louvada pelos superiores e pela imprensa liberal, porém, logo se moveram influências na penumbra dos gabinetes e Leonardo foi solto. Nas semanas seguintes Mateus teve por diversas vezes de se bater para escapar a emboscadas que lhe armavam nas vielas de Lisboa. Numa delas foi ferido por uma feia punhalada, perdeu muito sangue e esteve várias semanas hospitalizado. Ainda que tivesse conseguido salvar a vida, ficou bem ciente de que era uma pessoa marcada para os partidários do então exilado Miguel. E era-o numa cidade onde matar um homem se fazia por dez réis de mel coado.
Essa evidência devia ter feito dele uma pessoa mais discreta e cautelosa. Mas Mateus tinha no cumprimento do dever a bússola orientadora da sua vida e não mudou de atitude nem de caminho. De volta ao serviço continuou a actuar contra as violências e os abusos, viessem de onde viessem. Até certa altura, os sucessivos comandantes da Guarda, que estimavam o seu zelo e a sua rectidão salomónica, deram cobertura aos seus actos, mas em 1828 tudo isso mudou quando Miguel, regressado a Portugal, usurpou o trono e dissolveu as Cortes. A violência ganhava asas, o cacete fervia nas ruas, e começaram a multiplicar-se pelo reino fora as agressões aos malhados (liberais), as suas prisões arbitrárias e, até, as suas execuções. O tio de Trancoso, um dos mais notórios liberais da Beira, foi preso, os seus bens confiscados e acabou por morrer na prisão de Almeida.
Mateus sentiu a morte do tio como uma nova tragédia na sua vida, todavia não quis entendê-la como um sinal de alarme. Ao invés de muitos outros liberais que fugiram do reino, ele recusou a emigração não porque tivesse medo da vida noutro país, mas porque o dever lhe impunha que permanecesse ali. Não sabia ao certo que dever era esse. Talvez uma obrigação para com a imagem que tinha de si próprio; talvez o respeito da memória e da vontade do tio. O facto é que ficou num Portugal onde já não havia espaço para pessoas como ele. Temerário e teimoso, voluntariamente indiferente às nuvens negras que se acumulavam no horizonte, persistiu na sua já lendária rectidão e foi castigado por viárias vezes, despromovido para o posto de tenente e transferido para o Porto, onde não voltara desde a tragédia da Ponte das Barcas.
Chegou à cidade na manhã em que se enforcavam dez liberais. As forcas tinham sido levantadas na Praça Nova e os tambores rufavam, cavernosos, tenebrosos, chamando as pessoas ao suplício. Estava um dia cinzento e caía uma chuva miudinha, que não demovia o povo imenso que se juntara na praça, seguindo tudo com olhos ávidos e cruéis. Na orla daquele recinto apinhado dezenas de senhoras guarneciam as janelas de primeiro e segundo andar, espreitando por detrás de leques, num misto de horror e de curiosidade mórbida.
E Mateus ali ficou a cumprir a sua primeira missão policial no Porto, de dentes cerrados, com a roupa encharcada colada ao corpo, maldizendo a sua índole demasiado respeitadora da lei e a estúpida escolha da carreira militar. Foi nesse estado de desconforto físico e de revolta interior que viu os condenados descerem da Relação, em cortejo, carregando as tumbas da Misericórdia que lhes acolheriam os cadáveres. Lenta e metodicamente as forcas desempenharam a sua negra função e à uma da tarde a tragédia estava consumada. Depois de mortos, as cabeças dos enforcados foram separadas do tronco para serem pregadas e expostas em postes altos, como ele já vira fazer em Lisboa aos estudantes enforcados no Cais do Tojo. E, ao presenciar aquele espectáculo macabro, sentiu uma angústia indizível». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PortoEditora/JDACT