quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Os Dias da Febre. João Pedro Marques. «Alguns dias depois, as tropas do Porto revoltaram-se contra o usurpador, mas a revolta foi esmagada»

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Carlos Cabral
«(…) Sim, isso é verdade, reconheceu Carlos, fixando os olhos na bola e desferindo uma tacada seca e certeira. Eu não nego que possa haver um perigo para as liberdades, mas esse perigo parece-me distante. O perigo é iminente, disse, quase num brado, o que primeiro falara. Para já, quero concentrar-me no meu curso, continuou Carlos, como se não tivesse ouvido o amigo. Se o perigo que tanto receiam se concretizar, então eu juntar-me-ei ao Batalhão Académico. Mas não o fez, no imediato, ainda que o perigo se tivesse materializado, como os amigos temiam. O infante Miguel dissolveu a câmara dos Deputados e, depois, convocou cortes à moda antiga, que o confirmaram como rei, assim se consumando a usurpação e o fim do que restava do liberalismo (a Câmara dos Deputados foi dissolvida em Março de 1828 e as Cortes convocadas em 6 de Maio desse ano). Alguns dias depois, as tropas do Porto revoltaram-se contra o usurpador, mas a revolta foi esmagada. Derrotados pelos miguelistas e desmoralizados pela deserção da maior parte dos seus chefes, que fugiram para Inglaterra a bordo do navio Belfast, os homens que formavam o exército liberal passaram para a Galiza e foi só a muito custo, e no meio de grandes provações, que conseguiram seguir para França ou Inglaterra, onde já estavam vários refugiados portugueses.
Carlos Cabral seguiu todos estes acontecimentos à distância, assistindo à desorganização que minara o esforço e a coesão dos liberais. Lamentou os colegas que partiam em condições difíceis para um exílio cuja duração era indeterminada. Mas, interiormente, felicitou-se pela clarividência e o bom senso que o tinham levado a permanecer em Coimbra, apostando na finalização da sua formação jurídica e resistindo a um mar avisado impulso romântico que o teria condenado ao exílio ou a pior sorte. Sabia, claro, que os amigos lhe reprovavam a falta de generosidade. Inicialmente, essa reprovação incomodara-o por sentir, lá no íntimo, que era justificada e durante meses perguntara a si próprio se teria uma deficiência, uma lacuna da alma, que o inferiorizasse perante os outros. Mas esse sentimento de possível inferioridade durara pouco. Carlos rapidamente percebeu que a suposta lacuna era, na verdade, uma vantagem, uma superioridade relativamente a todos os que se perdiam em exaltações e melancolias.
O fim dos seus estudos coincidiu com o reinício da guerra no território português. Efectivamente, após quatro anos de exílio, os liberais tinham obtido um comandante na pessoa de Pedro, que abdicara da Coroa brasileira, algum dinheiro, uma pequena esquadra e um número de homens suficiente para desembarcarem perto do Porto e ocuparem a cidade, o que fizeram no Verão de 1832 (o desembarque no Mindelo e ocupação do Porto ocorreu a 9 de Julho de 1832). Contudo, este primeiro triunfo não teve sequência e os liberais ficaram enquistados no Porto porque o resto do país não se levantou em seu auxílio». In João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-098-5.

Cortesia de PEditora/JDACT