jdact
Carlos Cabral
«(…) Sim, isso é verdade,
reconheceu Carlos, fixando os olhos na bola e desferindo uma tacada seca e
certeira. Eu não nego que possa haver um perigo para as liberdades, mas esse perigo
parece-me distante. O perigo é iminente, disse, quase num brado, o que primeiro
falara. Para já, quero concentrar-me no meu curso, continuou Carlos, como se
não tivesse ouvido o amigo. Se o perigo que tanto receiam se concretizar, então
eu juntar-me-ei ao Batalhão Académico. Mas não o fez, no imediato, ainda que o
perigo se tivesse materializado, como os amigos temiam. O infante Miguel dissolveu
a câmara dos Deputados e, depois, convocou cortes à moda antiga, que o confirmaram
como rei, assim se consumando a usurpação e o fim do que restava do liberalismo
(a Câmara dos Deputados foi dissolvida em Março de 1828 e as Cortes convocadas
em 6 de Maio desse ano). Alguns dias depois, as tropas do Porto revoltaram-se contra
o usurpador, mas a revolta foi esmagada. Derrotados pelos miguelistas e
desmoralizados pela deserção da maior parte dos seus chefes, que fugiram para Inglaterra
a bordo do navio Belfast, os homens que formavam o exército liberal passaram para
a Galiza e foi só a muito custo, e no meio de grandes provações, que conseguiram
seguir para França ou Inglaterra, onde já estavam vários refugiados portugueses.
Carlos Cabral seguiu todos estes acontecimentos
à distância, assistindo à desorganização que minara o esforço e a coesão dos liberais.
Lamentou os colegas que partiam em condições difíceis para um exílio cuja duração
era indeterminada. Mas, interiormente, felicitou-se pela clarividência e o bom senso
que o tinham levado a permanecer em Coimbra, apostando na finalização da sua formação
jurídica e resistindo a um mar avisado impulso romântico que o teria condenado ao
exílio ou a pior sorte. Sabia, claro, que os amigos lhe reprovavam a falta de generosidade.
Inicialmente, essa reprovação incomodara-o por sentir, lá no íntimo, que era justificada
e durante meses perguntara a si próprio se teria uma deficiência, uma lacuna da
alma, que o inferiorizasse perante os outros. Mas esse sentimento de possível inferioridade
durara pouco. Carlos rapidamente percebeu que a suposta lacuna era, na verdade,
uma vantagem, uma superioridade relativamente a todos os que se perdiam em exaltações
e melancolias.
O fim dos seus estudos coincidiu com
o reinício da guerra no território português. Efectivamente, após quatro anos
de exílio, os liberais tinham obtido um comandante na pessoa de Pedro, que
abdicara da Coroa brasileira, algum dinheiro, uma pequena esquadra e um número de
homens suficiente para desembarcarem perto do Porto e ocuparem a cidade, o que fizeram
no Verão de 1832 (o desembarque no Mindelo e ocupação do Porto ocorreu a 9 de
Julho de 1832). Contudo, este primeiro triunfo não teve sequência e os liberais
ficaram enquistados no Porto porque o resto do país não se levantou em seu auxílio».
In
João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-098-5.