Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Príncipe Estrangeiro
«(…) Fiz uma careta de dor. Não precisava gritar tão alto. Abra
os portões agora mesmo, ou juro por Deus que vou obrigar o teu pai a bater-te
com mais força do que ele bate nas ferraduras, até entrar um pouco de juízo na
sua cabeça. Hossam? Ikar não baixou a arma de imediato. Parecia muito nervoso,
um péssimo sinal para alguém com o dedo no gatilho. Quem é essa aí? Ele apontou
a arma na minha direcção, o cano balançando loucamente. Virei o corpo por
instinto. Ikar não seria capaz de acertar nem um roc se tentasse, mas eu não
podia descartar a hipótese de ser atingida por acidente. Se ele atirasse, era
melhor que acertasse no meu ombro do que no meu peito. Essa aqui…, uma ponta de
orgulho tremulou na voz de Hossam enquanto erguia o meu rosto como se eu fosse
um animal, é a Bandida de Olhos Azuis. Aquilo soou mais impressionante do que costumava
ser, deixando um rasto de silêncio. Ikar encarou-nos do alto do muro. Mesmo àquela distância, vi a sua boca
abrir e pender por um momento, depois fechar. Abram os portões!, ele finalmente
gritou, então desceu correndo. Abram os portões! As enormes portas de ferro moveram-se
terrivelmente devagar, lutando contra a areia que se havia acumulado durante o
dia. Hossam e os homens que nos acompanhavam empurraram-nos com pressa enquanto
as antigas dobradiças gemiam. Os portões não se abriram por completo, apenas o
suficiente para passar um de cada vez. Mesmo após milhares de anos pareciam tão
fortes quanto nos primórdios da humanidade. Eram de ferro sólido, tão espessos
quanto o comprimento dos braços de um homem, e funcionavam graças a algum
sistema de pesos e engrenagens que nenhuma outra cidade conseguira duplicar.
Não havia como derrubá-los. E não
havia como escalar a muralha. Todos sabiam disso.
Parecia que a única forma de entrar na cidade era como uma
prisioneira, arrastada pelos portões com alguém segurando o seu pescoço. Que
sorte a minha. Saramotai ficava a oeste das montanhas centrais. O que
significava que era nossa. Ou pelo menos deveria ser. Após a batalha de Fahali,
Ahmed declarou o território como seu. A maioria das cidades tinha jurado fidelidade
rapidamente, expulsando das suas ruas os invasores gallans que haviam ocupado
aquela metade do deserto por tanto tempo. Conquistámos a confiança das outras
sem muita dificuldade. Ali era outra história. Saramotai havia criado as suas
próprias leis, levando a rebelião um passo além. Ahmed falava bastante sobre
igualdade. O povo local havia decidido que o único modo de alcançá-la era
derrubar quem estava acima deles. O
único jeito de ficar rico era tomar a riqueza alheia. Então os pobres se
voltaram contra os ricos usando o discurso da igualdade de Ahmed como
justificativa. Mas Ahmed sabia reconhecer um golpe. Sabíamos pouco a respeito
de Malik Al-Kizzam, o homem que tomara Saramotai, além do facto de ter sido um
servo do emir. Agora, Malik vivia no palácio e o emir estava morto. Então enviámos
pessoas para descobrir mais. E fazer algo, se não gostássemos das notícias. Elas
não retornaram.
Aquilo era um problema. Outro problema era como entrar lá para
procurá-las. Por isso eu estava ali, com as mãos tão fortemente atadas atrás
das costas que já perdiam a sensibilidade, e com uma ferida recém-aberta na
clavícula, causada por uma faca que errara por pouco o meu pescoço. Era
engraçado como ser bem-sucedida e ser capturada despertavam exactamente a mesma
sensação. Hossam empurrou-me à sua frente pela abertura estreita dos portões.
Cambaleei e estatelei-me de cara na areia, o cotovelo batendo dolorosamente no
ferro enquanto eu desabava. Aquilo doía mais do que eu julgara possível. Um
gemido de dor escapou enquanto eu rolava para o lado. A areia grudou em minhas
mãos onde o suor se havia acumulado sob as cordas. Então Hossam me agarrou, me
botou de pé e continuou empurrando. O portão fechou-se rápido atrás de nós. Era
quase como se estivessem com medo. Uma pequena multidão já se havia reunido
para observar. Metade portava armas. Uma parte considerável delas estava
apontada para mim. A minha reputação realmente me precedia». In Alwyn Hamilton,
A Traidora do Trono, A Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte,
Companhia das Letras, ISBN 978-855-534-029-1.
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