Cortesia
de wikipedia e jdact
«Que o meu canto seja no meio do
temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e
rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca
«(…) E, de tronco direito, sopro
para longe as primeiras fumaças. Mas ninguém se importa com estes ares de
desafio. Aos poucos, a cabeça vai-me tombando entre os ombros vergados pela
vida. Os meus olhos, nevoentos, voltam-se para o passado. O passado. Do fundo
do tempo, aparecem pedaços de recordações. Demoram-se um instante, doem-me
suavemente e somem-se, num tropel, da memória cansada. Caio numa complicada
malha de coisas vagas e sem nexo. Para ali fico dobrado num sonolento quebranto.
De súbito, estremeço: lá vem Antoninha das Dores semi-nua! Lá vem ela nos
braços do Chico Biló fardado de bombeiro! Apavorado, ergo a cabeça e olho em
roda. Não, ninguém pode descobrir o que estou pensando. E, impune, revejo
gulosamente a imagem da minha noiva em fralda de camisa. As fontes vão-se-me
perlando de um suor gelado; amarfanha-me a raiva de não poder voltar atrás,
mudar o tempo, e recomeçar a vida. Se fosse possível! Que me importava a mim o
que aconteceu!... Poltrão! Porque não casei eu com Antoninha das Dores?
Enrolo novo cigarro. Mas, agora,
com a pressa, caem-me pedaços de tabaco dos dedos trémulos. Fumo lume e sorvo
uma ansiada fumaça. O espelho, em frente, mostra-me o meu carão esverdinhado de
velho. Vejo-me, de queixo caído, a apertar as mãos uma na outra até os ossos
dos dedos estalarem. Poltrão. É isso: um cobarde. Sempre o fui, e só a presença
dos meus amigos me ajudava a suportar melhor a imagem tão odiada e tão querida
de Antoninha das Dores. Eu chegava sempre primeiro ao Café. Depois, mestre
Poupa. Mal encetávamos a conversa, víamos através do vidro da montra, o corpo
enorme de André Juliana sair de casa e iniciar lentamente a custosa subida. Com
alvoroço, eu dizia: lá vem o André! Nunca passou uma tarde sem que o dissesse.
Às vezes, pensava: amanhã, não digo aquilo. Pois se mestre Poupa o vê ao mesmo
tempo que eu... Ora bem; ao outro dia, a porta abria-se, o corpo pachorrento
saía para a rua, e era fatal a minha inquieta alegria: lá vem o André!...
Agora mesmo ia jurar que o estou
a ver despegar-se com moleza dos umbrais. Mas, na realidade, apenas vejo para
lá do vidro, ao fundo da rua, a casa destruída pelo fogo. Tudo tal qual como no
fim do incêndio: a parede negra, sem portas nem janelas... Foi aí que mestre
Poupa bombeiro morreu, lutando contra as chamas. André Juliano, esse ainda está
vivo; mas, em Lisboa, atrás das grades da Penitenciária. Dou voltas na cadeira,
torço-me, enterro o chapéu pela cabeça abaixo. Tudo em vão. Antoninha das Dores
continua na minha frente, deitada nos braços do Chico Biló. Saem-lhe da camisa
as pernas, o ventre e um pedaço do seio; de volta, o povo arregala os olhos.
Vejo-os a todos, rosto a rosto, com a facilidade de quem está olhando
vagarosamente uma fotografia. Como os odeio! Depressa, Maneta, outro café! Espero,
esfregando as mãos. E, ao esvaziá-lo, de queixo erguido, vejo no espelho o meu carão
de tal forma espantado que me parece ter acabado de beber veneno. Coberto de
suor, lá vou aos poucos serenando.
André Juliano, meu amigo de
infância, como nós mudámos... Sim, senhor, como mudámos. Na escola éramos
temidos. Passávamos as tardes de castigo e, um dia, armámos uma desordem
medonha. Partimos carteiras, o quadro grande, e saímos cheios de troféus: pedaços
de bibes rasgados, os peitos das camisolas salpicados de medalhas de tinta.
Fomos expulsos. Acabámos por aprender as letras, os números e uma fantástica
História de Portugal com o bebedola do Jaime Ursulino, que nos ia matando à
varada e a quem, por fim, esmurrámos de sociedade. Nossos pais consideraram
maduramente no caso, e concluíram que estávamos quites com a cultura. Foi um
alívio. O largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei
das ruas da vila passaram a ser o nosso mundo. Um mundo cheio de sustos, mas
mais leal que as aritméticas do Ursulino e as falinhas choronas dos moços da
escola». In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial
Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.
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