jdact e wikipedia
Keter
«(…) Recordo (e recordava), para dar um sentido a
desordem de nossa criação desordenada. De novo, como naquela noite no
periscópio, me concentro num ponto remoto da mente para dali arrancar uma
história. Como o Pêndulo. Diotallevi já me tinha dito que a primeira sefirah é
Keter, a Coroa, origem de tudo, vácuo primordial. Primeiro criou um ponto, que
se tornou o Pensamento, onde imprimiu todas as figuras... Era e não era,
encerrado no nome e esquecido no nome, não tinha ainda outra designação que Quid?,
puro desejo de ser chamado por um nome... No princípio traçou signos no vento,
uma chama escura brotou de seu fundo mais secreto, como uma névoa incolor que
desse forma ao informe, e mal esta começou a expandir-se, no seu centro surdiu
um manancial flamante que se derramava para iluminar as sefirot inferiores,
descendo em direcção do Reino. Mas talvez nesse tsimtsum, neste retiro, nesta
solitude, dizia Diotallevi, já houvesse a promessa do tiqqun, a promessa do
retorno.
Hokmah
Fora dois dias antes. Aquela quinta-feira eu estava refestelado na cama
sem ânimo para me levantar. Havia chegado na tarde anterior e telefonara para a
editora. Diotallevi continuava no hospital e Gudrun se mostrava pessimista: ele
estava na mesma, ou seja, cada vez pior. Eu não ousava ir visitá-lo. Quanto a
Belbo, não estava no escritório. Gudrun me informou que ele havia telefonado
dizendo que estaria fora por motivos de família. Que família? O facto estranho
é que havia levado consigo o Word processor, Abulafia, como agora o chamava,
juntamente com a impressora. Gudrun disse-me que ele os havia levado para casa
a fim de terminar um trabalho. Para que tanto empenho? Não podia trabalhar no
escritório? Senti-me deslocado. Lia e o menino só voltariam na semana seguinte.
Na noite anterior, dei uma passada no Pílades, mas não encontrei ninguém. Fui
despertado pelo telefone. Era Belbo, com voz alterada e distante. Então? De
onde está telefonando? Achei que tinha ido visitar os seus parentes nos
cafundós-do-judas. Não brinque, Casaubon, o assunto é sério. Estou em Paris. Em
Paris? Mas eu é que devo ir a Paris! Sou eu que devo visitar o Conservatoire! Não
brinque, estou dizendo. Estou numa cabina.., ou, melhor, num bar, de modo que
não posso falar por muito tempo... Se não tem moedas, peça uma ligação a
cobrar. Estou em casa e posso esperar. Não se trata de moedas. Estou em apuros.
Começava a falar às pressas, para não me dar tempo de interrompê-lo. O Plano. O
Plano é verdadeiro. Por favor, não me diga coisas óbvias. Estou sendo
procurado. Por quem? Custava-me ainda compreender. Mas, ora Casaubon, pelos
Templários; sei que não vai querer acreditar em mim, mas é tudo verdade. Eles
pensam que eu tenho o mapa, me apertaram, obrigaram-me a vir a Paris. Sábado à
meia-noite querem que eu esteja no Conservatoire, sábado, entendeu?, a noite de
São João... Falava de maneira desconexa e eu não conseguia acompanhá-lo. Eu não
quero ir lá, Casaubon, estou fugindo, são capazes de me matar. Deve avisar o De
Angelis, não, o De Angelis é inútil, nada de polícia, pelo amor de Deus... E
então? Então, não sei; leia as disquetes, no Abulafia, nos últimos dias deixei
tudo gravado ali, até mesmo o que aconteceu neste último mês. Você não estava,
não sabia a quem contar, fiquei escrevendo durante três dias e três noites...
Ouça, vá ao escritório, na gaveta da minha escrivaninha há um envelope com duas
chaves. Não faça caso da grande, pois é a chave da casa de campo, mas a menor é
do apartamento de Milão; vá lá e leia tudo, depois decide, ou melhor, depois
nos falamos, sei lá, não sei bem o que fazer... Está bem, vou lá e leio. Mas
depois, como o vou encontrar? Não sei ainda, estou mudando todas as noites de
hotel. Digamos que você faz isso tudo hoje e espera em minha casa amanhã de
manhã, que eu tento telefonar para lá, se puder. Meu deus, a senha... Ouvi uns
rumores, a voz de Belbo aproximava-se e afastava-se com intensidades variáveis,
como se alguém lhe tentasse arrancar o aparelho. Belbo! Que está havendo? Me encontraram.
A senha...» In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea
(Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT