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de wikipedia e jdact
«(…) Ele não voltará a cometer
outra imprudência! Aquela serviu-lhe de lição! Ai estes cristãos! Tão ciosos da
sua ética e não são capazes de perdoar! Perdeu o pai…, justificou Flaviano. É
compreensível… Mas, no caso, nem de perdão se poderá falar! O meu esposo não
cometeu qualquer crime, ninguém imaginaria que um homem tão experimentado
pudesse ser tão imprevidente… É verdade…, consentiu, enfadado com o tema. E o
bebé, como está hoje?, perguntou, alçando o olho em busca do rosto da criança
dormida na alcofa. Quando um novo dia foi fecundado por Hélio, ainda que
escondido atrás das intermináveis nuvens grávidas, as rodas de um imponente
carro puxado por quatro cavalos estralejaram no piso da Via XIX. Protegida pela
cobertura, Priscila entreviu os fios de luz de alguns archotes que se abrigavam
por detrás das janelas da mansio
de Aseconia, a estalagem à face da estrada que, nas imediações da sua villa, dava guarida aos
viajantes. O Império Romano dera ao ocidente uma grande bênção: a rede de vias
como nunca houvera conhecido. Fora desenvolvida por necessidades militares e de
provimento da posta, e que logo veio a ser aproveitada para o tráfego comercial
e social.
Mas não eram as bênçãos do
império que motivavam as reflexões de Priscila, Valéria e Flaviano. Dentro do
casulo saltitante, os três preocupavam-se em evitar que a chuva entrasse nos
precários, embora luxuosos, aposentos e em chegar, rapidamente, a bom porto. A
meio de uma manhã pluviosa, como tantas que a precederam, o santuário de Ísis
era um lugar praticamente deserto, no cimo de um monte. À medida que se
aproximava, ganhava forma um imponente edifício granítico suspenso numa
colunata. Priscila conhecia-o de cor. Apreciava o lintel com a figura da deusa
e o espaço evocativo da natividade do divino Hórus, com as paredes decoradas
com desenhos alusivos às fases desse nascimento junto a várias deidades. Mas,
olhando-o de longe, suspenso sobre a vegetação luxuriante e banhada de chuva,
pressentiu a magia do lugar, como se houvesse sido ali colocado para lhe tocar
a alma. E essa energia irradiava, intensa, daquele espaço sagrado, de
intermediação com o divino, despertando o ser espiritual que a habitava.
Quando
chegou às portas do templo, apenas se entrevia, sentado, um velho sacerdote calvo,
que vivia nas imediações e lhe provia os ofícios e a manutenção. Protegido das
fúrias dos céus, soergueu os olhos, em jeito inquisitivo, à chegada dos
peregrinos. Fora acordado de um sono profundo pelo tropel dos cavalos
governados por Arménio. Recostava-se na cadeira, dentro do edifício principal.
Por cima da padieira da porta bailava, ao sabor do vento, uma placa que
anunciava: Vendem-se lamparinas,
filtros para as libações, filactérios, ex-votos e estatuetas de Ísis.
Porém, quando se apercebeu que chegava um carro bem aparelhado, onde reluziam
as faleras, os peitorais dos animais, os passa-rédeas de fino recorte, argolas
de bronze por onde passavam as oito rédeas do carro, levantou-se como que
impelido por uma mola. O sacerdote nunca vira aquela carruagem, uma verdadeira
obra-prima, com um elevado nível de perfeição, em que o artista conseguira
combinar uma decoração complexa com um vibrante Mercúrio, deus protector dos
viajantes. E tinha razão para não a ter visto: fora a prenda que Lucídio Danígico
Tácito adquirira para a esposa quando soube da gravidez do primeiro herdeiro.
Ela e a criança precisariam de cómodos para viajarem, à altura do prestígio
social do dono.
Senhora,
a esta hora e neste dia…?! O velho sacerdote não escondia a surpresa por ver
Priscila, muito embora a soubesse muito devota e adivinhasse, assim que o
enxergou, que aquele carro só aos Danígicos poderia pertencer. É verdade,
Feliciano! Os tempos não andam tão favoráveis como esperava… Preciso da ajuda
da Senhora dos Céus! Este é o lugar certo! Muito embora o século não esteja lá
muito propício aos nossos cultos… Feliciano aproveitou para desfiar o coro das
lamentações pelo facto de a seita dos cristãos estar a ganhar cada vez mais
adeptos, sobretudo depois da conversão e favores dos imperadores. E de estes se
tornarem agressivos opositores dos ancestrais cultos que se velavam naquela
terra, desde o tempo em que a velha deusa Nábia fora senhora dos antepassados.
E igualmente desde que Ísis ali chegara, vinda do oriente, prometendo aos iniciados
a felicidade durante a vida e a salvação na que se lhe seguiria. Essa novidade transformara
a deusa que nascera no Egipto numa incansável viajante pelo mundo helénico e romano,
adaptando-se permanentemente aos novos tempos, fundindo-se com Demeter de Eleusis,
ambas vinculadas ao cíclico renascer da natureza. Aquela que fora a primeira companheira
de Osíris, agora de Serápis, mas também infatigável peregrina pelos inúmeros portos
do Mare Internum,
tocando o coração dos atenienses, gauleses, romanos e, finalmente, dos hispânicos
da Península Ibérica, tinha agora concorrência de peso, no que tocava às promessas
de salvação para além da morte: a de um outro deus oriental anunciado por um judeu
crucificado em Aelia Capitolina, a antiga Jerusalém». In Alberto S. Santos, O Segredo
de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
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