quarta-feira, 24 de abril de 2019

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Talvez tenha realmente parado um segundo: uma das pernas flectida, ligeiramente dobrada, o pé ligeiramente erguido do chão, a outra perna firme…»

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O Andar
(…) Ergueu a cara, continuando a caminhar cadenciadamente, movendo cadenciadamente as ancas magras no fato cor-de-rosa aos quadrados muito pequenos. Olhou o céu, as nuvens espalhadas aqui e além, alongadas, esfiapadas, e o sol bateu-lhe nos olhos, enchendo-os de lágrimas, cegando-a. Sorveu o sol, respirou fundo o sol, contornou uma esquina e continuou pelo meio da rua pequena, deserta, cadenciadamente, as ancas cadenciadamente sob o fato cor-de-rosa, os olhos no chão, depois sobre as casas, moradias feias, medíocres, depois nas janelas estreitas escuras das casas e logo o sol; a cabeça atirada para trás com os cabelos a deitarem-se abaixo dos ombros e aquela vontade súbita de até respirar as nuvens. Parece imóvel, por um segundo imóvel no meio da rua, a cara franzida, os lábios secos, a mala a balançar na ponta dos dedos. Talvez tenha realmente parado um segundo: uma das pernas flectida, ligeiramente dobrada, o pé ligeiramente erguido do chão, a outra perna firme a sustentar-lhe o corpo retesado e de novo já toda ela é movimento cadenciado, ligeiro, a pulseira azul três voltas de contas grandes pendendo-lhe pesadas sobre o pulso, os olhos de novo sobre as casas já a descerem para os passeios, para a rua deserta, onde uma mulher desponta, ainda a contornar a esquina; depois quase que pára, por um segundo quase que pára, para logo se ir aproximando ágil, quase alegre, contendo todavia nos olhos a marca de um peso, talvez o peso do tamanho do sol ou muito maior, um peso de gerações que como ela param um segundo a respirar a tamanha claridade do dia. E logo continua, as ancas magras marcando o ritmo do andar, os passos como único ruído mais próximo na solidão vergada da rua onde somente uma mulher surge agora quase alegre e se vai aproximando depressa, quase livre, um casaco de malha instável nos ombros que tentam a cada passo verem-se livres daquele peso inútil». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT