quarta-feira, 17 de abril de 2019

As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. «Francesco teve de desviar o olhar para esconder o riso. Procurou cumplicidade em Mathurina, mas o que encontrou foi uma silenciosa reprimenda que o fez ruborizar»

jdact

2 de Maio de 1519,
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) A última coisa que jantou foi uma sopa quente, disse entredentes, afastando o olhar do rei, que, apesar da confiança que tinha com o seu senhor, lhe instilava um profundo respeito. Francesco Melzi encontrava-se junto à cabeceira. O fiel secretário pessoal de Leonardo não estava há mais de doze anos com ele, mas o seu carinho, a sua preocupação e o trato familiar haviam-no confirmado como o seu braço direito. Está tudo a postos, majestade, disse ao rei. O monarca percebeu imediatamente. Leonardo tivera tempo suficiente e prudência para preparar a sua partida e tinha como assente que o seu testamento estava definido e que mais nada o prendia ao mundo dos vivos. Francisco I de França dirigiu um olhar rápido ao seu conselheiro real, François Desmoulins. Uma das capacidades do jovem regente era a comunicação não verbal, algo muito útil em situações como aquela. Numa fracção de segundo, Desmoulins instou a comitiva que apinhava a pequena sala que fazia as vezes de quarto principal que concedesse a sua majestade alguns minutos de intimidade. Com um pequeno gesto, indicou que os mais próximos de Leonardo poderiam, se fosse do seu agrado, ficar ali. Nada tinha a esconder daqueles que partilhavam igual afecto pela mesma pessoa.
Mon père..., foram as únicas palavras que o governante de França ousou pronunciar. Francesco, disse Leonardo com uma confiança que ultrapassava qualquer solenidade real e um finíssimo fio de voz, o qual mantivera o costume de italianizar os nomes daqueles com quem lidava. Grazie por realizar semelhante... Não há nada para agradecer,  interrompeu Francisco, evitando que o idoso desperdiçasse esforços. Por onde anda Caprotti? Pensava que, num momento como este, haveria de querer estar presente. Sabia que a pergunta era a menos adequada, mas precisava de começar de qualquer maneira, e não sabia quanto tempo lhe restava. O jovem Francesco apressou-se a responder. Sabia que Salai tinha consciência do delicado estado de saúde do mestre. Ele próprio procurara transmitir-lho por meio de carta, da qual obteve como resposta um seco mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Uma informação que administrou com cuidado e dissimulação, já que a missiva nunca chegou às mãos de Leonardo. Vontade não faltou a Francesco, visto que, apesar do abandono, Leonardo se lembrara de Gian Giacomo Caprotti, alás, Salai, com grande generosidade, no seu testamento. Mas era a vontade do maior génio que havia conhecido, e decidiu mantê-lo na ignorância para não provocar males maiores. Não lhe custou muito mentir a um rei. Giacomo encontra-se em Florença a tratar de questões financeiras, afirmou com uma credibilidade esmagadora, e, na impossibilidade de chegar a tempo às vossas terras de França, preferi não o alertar acerca deste funesto acontecimento. Maldito fornicador, este diabo!, gritou Leonardo, fazendo acompanhar estas palavras de uma ruidosa tosse. De certeza que anda a passear a verga e, ao mesmo tempo, a limpar os bolsos, não sabe fazer outra coisa!
Francesco teve de desviar o olhar para esconder o riso. Procurou cumplicidade em Mathurina, mas o que encontrou foi uma silenciosa reprimenda que o fez ruborizar. Francisco acompanhava toda a cena com atenção e, apesar da tristeza que se respirava no ambiente, esboçou uma careta que poderia perfeitamente ter resultado num acesso de riso. Mas, acto contínuo, Leonardo voltou a pousar os olhos no rei de França, como fazia há mais de vinte anos. Leonardo, mon ami, calma..., sussurrou Francisco enquanto compunha os cabelos de um idoso agora alterado que se revolvia ligeiramente por baixo dos lençóis. Há algo que possa fazer por ti, maître? Não, majestade. Já não há nada a fazer. Queriam matar Leonardo da Vinci. De uma maneira ou de outra, conseguiram. Pequenas lágrimas apareceram nos espelhos da alma de Mathurina. Francesco Melzi abanou a cabeça. Quanto mais tempo passava, mais custava a Leonardo da Vinci articular alguma palavra, e demorava-se a dosear a respiração que expelia de uma maneira inteligente e racional, como se se tratasse de um novo invento para formular as palavras necessárias no tempo certo». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT