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A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…)
O seu aspecto severo parecia retirar
cor às suas faces, que nos últimos tempos se tinham transformado numa expressão
de vão desafio a qualquer possibilidade de felicidade; para sempre haveria de chorar o seu marido há
muito tempo enterrado e o meu irmão mais velho Mardoqueu. Para todos aqueles
que tinham conhecido a jovem mãe que ela tinha sido, sempre na brincadeira, o
seu ar consumido de agora era como uma prova de que a vida poupa as suas
frechas mais aguçadas para as mulheres, que trazem, e choram..., os filhos que
se vão. Alguma de vós viu o tio?, perguntei. Cinfa encolheu os ombros. A minha
mãe passou a língua pelos seus lábios fendidos como se enfadada com a minha
interrupção e abanou a cabeça. Frei Carlos e judas vieram ter comigo à cozinha.
Não há sinais dele disse o frade. Sentámo-nos à mesa à espera. Subitamente
vimos aparecer à porta do pátio a minha tia Ester. Trazia um vestido preto de
gola subida que parecia iluminar a sua face trigueira. Os seus expressivos
olhos amendoados abriram-se horrorizados: que manchas são essas?, perguntou,
apontando para as minhas calças, judas esteve a chorar?! Cerrou os queixos numa
expressão de crítica, fitando-me, enquanto ajeitava debaixo do lenço carmesim
as madeixas dos seus cabelos tingidos de hena. Delgada e alta, de uma beleza
feita de linhas e sombras cavadas, podia dominar uma sala com um único relance
lançado do alto do seu elegante nariz.
Um nadinha de sangue, comecei a explicar. Os flagelados
iam... Sacudiu as mãos, chupando as faces de um modo que a fazia parecer uma
dançarina mourisca. Não digas nada! Nem quero ouvir! Oh Senhor! Não se podiam
ao menos lavar? Faz lá como quiseres, mas que a tua mãe não veja judas nestes
preparos. Nunca mais se calava! Vai, vai-te lavar, concordou frei Carlos,
acenando-me para que me retirasse, já lhe tinha dito que era a primeira coisa
que devia ter feito quando chegou a casa, acrescentou, dirigindo-se à tia
Ester. Lancei-lhe um olhar furibundo. Ele torceu os lábios num sorriso de
soslaio e levantou as sobrancelhas, como se fôssemos rivais na disputa da
afeição de minha tia. Voltando-se para ela, disse: agora, quanto ao meu
problemazito... Levei Judas comigo para o quarto, tirei-lhe as roupas e despi
as minhas. Limpei-o com a solução de água e vinagre que a minha mãe tanto
prezava, sentindo o seu corpo brando entre as minhas mãos. Era um miúdo de
cinco anos, sólido, já musculoso e dono de uns sedutores olhos
cinzento-azulados, que parecia destinado a tornar-se num Sansão de pele
leitosa.
Pouco dado a abluções, disparou para a cozinha mal acabei de o
vestir. Quando aí voltei, ao mesmo tempo que acariciava o seu pião, arrepanhava
a fímbria do vestido de tia Ester, enquanto ela preparava o seu adorado café
com leite de amêndoa e mel à moda da sua Pérsia natal. Lá fora, o surdo estrondear e o ranger dos carros do entulho foi
repentinamente abafado pela gritaria de uma mulher. Abrindo as portadas para
ouvir, avistei uma carruagem vermelha que me era familiar desembalada pela rua
abaixo. Como sempre, os cavalos
estavam arreados com um tecido prateado de franjas azuis. Mas o cocheiro,
habitualmente um cristão-velho com a cara picada das bexigas, tinha sido substituído
por um Golias loiro com um chapéu de aba larga de cor de ametista». In Richard Zimler, O Último Cabalista de
Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT