Cortesia
de wikipedia e jdact
Laços
e Punhais
«Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de perdas
saiu peras. Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e
deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores. Quem sabe um dos que estudam a
minha obra, preparando com a maior gravidade a sua dissertação ou tese, pare,
pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer
filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver
com elas. Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores
se rompem, pessoas se desencontram e magoam. Mas V. tinha dito peras! Não, eu
falei perdas! Peras... Perdas... Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço
de vida, um brilho de entendimento se apagou. Eu ia dizer que V. me faz muita
falta, mas V. entendeu V. está em falta... comigo, com a vida, consigo mesmo. E
passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo
esteve em desconserto, e nós desconcertados. Quando eu era menina, certo dia
num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas
me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se
mexendo (chamadas olhos, ansiosos, tranquilos,
amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo
sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto. As outras salsichas também
olhavam com os seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados,
agitavam mãos ou abriam e fechavam os seus furinhos-boca respondendo. Palavras
esvoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas.
Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém
não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou
baixos mas furiosos. Agitação na sala de jantar. Briga em família. Então nem
sempre que alguém dizia flor o outro pensava flor? E podia entender pedra? Em
lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras-pedra? Nada
era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos. Até
ali, para mim palavras eram objectos mágicos: agora via que podiam ser
traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de
vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia engasgar-se,
até morrer. Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em
falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras
preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em
doces laços, ou nos matam dolorosamente, como punhais.
Agendar
a Vida
Abro uma página da minha agenda para
demarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres, que
é onde ela começa a perder pé. A fantasia não pede licença para se desenrolar:
logo vejo uma infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com a sua agenda,
nela a floresta dos compromissos, mal sobrando alguma trilha estreita para
andar e respirar. (Nas folhas desta minha
actual quero abrir entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante da minha
janela, ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa). Vejo também
agendas quase vazias onde se procura melancolicamente algo para quebrar o
sem-sentido da vida: nem uma visita, uma data de aniversário, nenhum afecto
nomeado, nem ao menos um pagamento nesses dias que parecem um deserto sem
contornos. Nem uma miragem ao longe? Pessoalmente não vivo sem uma agenda,
aquelas de bloco, ao lado do computador. Às vezes olhar a folhinha me dá
alegria: um encontro bom, ou um dia inteiro só pra mim. Noutras folhas, um
engarrafamento de garatujas (a minha letra, horror das professoras desde os
primeiros anos de escola) com mais compromissos do que meu fundamental desejo
de liberdade quereria. Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser
liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na
calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na relva do parque ou
jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando as suas formas: camelo, coelho, árvore ou
anjo». In
LyaLuft, Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011,
ISBN 978-850-109-376-9.
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