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«(…) Com cinco anos, enquanto Estina, calçada com as suas
meias de lã parda e branca, corria para a mestra, Quina, ficava sentada no
degrau que comunicava a nova cozinha com os outros aposentos, e que era um
pequeno caixote oscilante, posto ali para facilitar a subida das crianças. Ela
segurava nos braços o mais novo dos irmãos, e cantava com a vozinha trôpega,
quadras irreverentes a respeito da Patuleia, em cujas trincheiras combatera o
marido de Narcisa Soqueira, um homem bronco até ao inverosímil, herói de muitas
histórias galhofeiras. Dos caibros, cujo pinho claro se defumava já, pendiam
tranças de cebolas, e a dobadoira, com a meada enfiada nos braços, estava sobre
uma prateleira junto à fila de pepinos maduros que se guardavam para semente.
No boqueirão da chaminé, que parecia a forma duma pirâmide, brilhavam oleosas
fuligens. Chovia. A água repicava de encontro ao zinco que forrava até meio a
porta que ficaria depois cheia de entalhaduras a canivete, marca e presságio da
futura estatura de todas as crianças da família que ali se mediam aos dois
anos, e cuja altura dobrada seria, diziam, a definitiva. O armário embutido ao
canto da banca, em triângulo, supurava ainda resina dos seus nós. Aquela era a
cozinha nova, a que substituía a dependência térrea onde se cozia o pão, e que
ficava no seguimento das cortes do gado, no quinteiro, terreiro muito afofado de
matos onde a chuva e a urina do gado empoçavam, e onde a geada fazia efeitos de
corais brancos nos gravetos de urze. Por um fenómeno não muito raro no coração
das mais extremosas mães, Joaquina Augusta encontrou um terreno de afectos
quase totalmente dedicado à primeira filha, Estina. Talvez porque ao nascimento
desta se ligassem mais vivos pormenores sentimentais, ou porque a criança ao
crescer se revelasse detentora de perfeições e afinidades que seriam réplica da
própria mãe, Maria distinguiu-a desde sempre, fosse no desvelo da educação ou
no poupar-lhe as canseiras mais pesadas do lar. Entretanto, Quina, desde muito
nova, lidava sob o estímulo da mãe, que a exigia activa e responsável, mais do
que seria de desejar em menina tão miúda. Mas ela vergava-se àquela seca
disciplina, adquirindo uma consciência de adulto, um orgulho de capacidade que
seria o remorso de Maria, se esta tivesse ócios disponíveis para tais subtilezas.
Deixa-a brincar também, dizia Francisco, tocado pelo azafamado jeito da
cachopinha, que corria da adega à horta, acamava a roupa no cortiço da barrela,
vedava com bosta húmida à porta do forno, carregava o linho que demolhava nas
presas ou corava no limiar do pomar.
Olha que a minha prima do Soito casou aos onze anos. Aos
treze teve dois filhos dum ventre, e criou-os, que ninguém lá foi criar-lhos,
ripostava Maria. Este argumento da parenta, cujo casamento fora tratado por
inculcas entre duas casas fartas,
era fatídico. Quina deteve-o como exemplo desde o alvorecer da razão e, quando
velha, ouvia ainda a mãe falar daquela heroína prima do Soito, quando alguém
aludia à extrema juventude duma noiva ou duma esposa, para desculpar-lhe as
leviandades e os feitos ingénuos. Quina chegara a ganhar raiva à pobre
criaturinha, agora feita uma mulher gemebunda, a quem os muitos e sucessivos
partos tinham abalado o coração. Apenas o pai ela tinha por aliado, somente ele
a socorria com o disfarçado conforto dum sorriso, uma palavra, quando Quina
passava, os olhos pregados no chão, sob o acicate da mãe sempre implicante,
sempre manejando o fueiro e a chinela com uma expressiva agilidade. Entre Quina
e o pai foi aos poucos surgindo uma espécie de aliança secreta, uma
cumplicidade quase irónica que atingia Maria, caçoando da sua brusquidão, uma
vez que não seria possível pôr-lhe cobro. E, naquele lar em que o chefe
aparecia apenas para ser servido, para aceitar a escolha do melhor bocado e a
servidão feliz de todos os que levavam afinal o fardo das monótonas canseiras,
Quina recolhia com gratidão a deferência que o pai, tão admirável, tão
estranho, tão difícil, lhe insinuava. O amor por ele tornou-se devoção». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954,
Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.
Cortesia de Rd’Água/JDACT