«(…) E foi decerto pela sua
irreprimível entrega à Igreja e às populações mais miseráveis de Roma que o
Sumo Pontífice, reconhecendo ao homem razoáveis capacidades de esperteza e um
teatral afecto na relação com os desgraçados, o designou para dirigir o grupo
organizador da recepção à embaixada portuguesa. Nesse dia, o dia da nomeação
papal, Francesco Petrini ficou radiante. E logo tomou a decisão de ir na mesma
tarde ao anexo das traseiras do castelo de Sant’Angelo, onde, sabia-se, por
costume se reuniam uns tantos profanos e alguns clérigos da cúria para discutir
e proceder ao arranjo das festas de acolhimento às comitivas estrangeiras. No
entanto, ao chegar ao anexo, não encontrou ninguém. Voltou no dia seguinte, e
no outro, e no outro ainda, até que à quarta tentativa sem resultados foi ter
com um subdiácono da Santa Sé, ordenando-lhe que mandasse convocar os elementos,
já antes escolhidos pelo secretariado da chancelaria, para uma reunião de
trabalho. Estava com pressa de mostrar serviço e de zelar pelo sucesso da obra.
E para quando quereis que os convoque?, perguntou o padre. Quero-os amanhã lá,
às três horas da tarde, respondeu o outro, sem hesitar. Todos: romanos e
portugueses.
Raquel Aboab, a judia que em
Dezembro partira de Lisboa por decisão e vontade de Diogo Pacheco, não fazia
parte do grupo, mas, como se tornara amiga e protegida dos portugueses enviados
a Roma pelo rei Manuel, com vista a ajudarem os romanos na preparação dos
festejos, criou o hábito de os acompanhar para toda a parte. Por isso, foi sem
cuidados nem reservas que a jovem compareceu ao encontro do dia seguinte,
solicitado por Francesco Petrini. Quem vos convocou, mulher de Deus?, berrou o
homem, estupefacto, quando viu a jovem a entrar na sala. Quem sois vós? Porque
estais aqui? Apanhada de surpresa pela infeliz e agreste intervenção do
eclesiasta, Raquel Aboab corou ligeiramente, e tentando a custo dominar a raiva
e o medo, respondeu que era portuguesa, amiga dos portugueses enviados pela coroa
de Lisboa para auxiliarem os romanos nos trabalhos de acolhimento à embaixada
que dentro de poucas semanas haveria de chegar à Cidade Santa. E qual é a vossa
graça?, perguntou ele, no mesmo tom boçal. Raquel. E que mais? Chamo-me apenas
Raquel, mentiu. Tendes nome de judia...
Num completo estado de
desassossego, já quase a chorar, a jovem negou a origem e propôs-se
imediatamente sair do compartimento e regressar sozinha à casa que lhe dava
abrigo desde a chegada a Roma. Esperai, esperai um pouco, ordenou D. Petrini,
impositivo. E aproximando-se lentamente da mulher, quis saber onde ela morava e
o que fazia. Moro perto daqui, num pobre casebre das Seculares Reparadoras da Virgem
das Dores. E aí não fazeis trabalho de oração? Não devíeis estar lá numa
atitude de constante penitência, de vigília consagrada a Deus e à Virgem? Estou
de passagem por Roma, sou estrangeira, esclareceu a jovem, e só por isso as
outras religiosas me concedem o favor de uma liberdade diferente da delas. Mas
não deviam..., gritou o clérigo, reprovativo. Ide embora na santa paz de Deus
Nosso Senhor, e num tom ainda mais alto, e orai pelos vossos pecados e a
salvação do homem.
Uma chuva miudinha começava a
cair sobre a cidade, a cidade de todos os vícios, como era conhecida na Europa
cristã. Raquel Aboab assomou à porta, cobriu a cabeça com um véu oferecido por
Diogo Pacheco e desatou a correr, chorando e soluçando em direcção à casa onde
morava. A residência destinada à sua estada e segurança fora escolhida, a
pedido de Diogo Pacheco, por João Faria, que, dizia-se em segredo, mantinha há vários
meses uma relação íntima e secreta com a madre abadessa daquela Ordem
religiosa. E era decerto por causa desta cumplicidade pecaminosa que Raquel,
protegida de João Faria, dispunha de uma liberdade de movimentos jamais
consentida a qualquer outra residente. A partir desse dia, o da expulsão da
estrangeira, nunca mais as reuniões, mesmo as impontuais, decorreram como até
aí. Os romanos já se haviam habituado a gostar da jovem e os portugueses
adoravam-na. Além disso, pouco ou nada havia já para discutir ou organizar, e,
no entanto, às três horas da cada tarde lá estava Petrini a dar instruções e a tecer ideias mais
do que gastas sobre a importância do acontecimento de alto relevo para a Igreja
e Sua Santidade. Mas certo dia, tomado por um invulgar estado de boa
disposição, ou talvez possuído por um retábulo de intenções poucos claras, o
bispo quis saber pelos portugueses o que era feito da jovem das Seculares
Reparadoras. E até se manifestou vagamente arrependido pelo tom agreste como a
excluíra da assistência deles. Nunca mais a vi e julgo que nenhum de nós voltou
a ter contacto com ela, respondeu o mais velho e responsável do grupo, tabelião
de ofício e homem de extrema confiança da corte do rei português». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
Cortesia de OdoLivroE/JDACT