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«(…) Estais na casa de Deus,
benzeu-se, de imediato, e, como podeis testemunhar, aqui também trabalhamos por
Ele. E depois, aos berros. Por Ele, pela Santa Madre Igreja, pelo Santo Padre,
que é o nosso embaixador do Céu, e pelo vosso piíssimo e sacratíssimo rei
Manuel I. Mas eu não faço falta nenhuma, senhor, disse ela, baixinho, quase atemorizada.
Com a cota de uma mão o clérigo limpou a escuma dos cantos da boca, fixou os
olhos da rapariga e, já então em sérias dificuldades para controlar a costumada
histeria e o tradicional mau-humor, concluiu peremptório, ruborizado: só eu e
Deus sabemos a falta que fazeis. Por isso, amanhã espero por vós. E saiu à
pressa, batendo a porta com enorme estrondo.
As palavras assim proferidas pelo
bispo, quase tão vigorosas quanto ameaçadoras, associadas ao modo rude como se
despediu, deixaram os portugueses num estado de sofrido silêncio e a jovem
judia em doloroso pânico. Os próprios romanos, que assistiram atónitos àquele
desvario endemoninhado, encolheram-se de medo e só depois acorreram a confortar
Raquel, caída entretanto em inconsolável pranto e desespero. Não quero voltar
aqui!, exclamou ela, soluçando. Apanhados de surpresa, mal sabendo o que dizer,
os homens rodearam a rapariga de afectos, com os seus capotes protegeram-na do
frio cada vez mais cortante. Alguém exclamou Já falta pouco para isto acabar,
e, juntos, acompanharam-na, temerários, à casa das Seculares Reparadoras. E prometeram
que na tarde seguinte lá estariam todos, vigorosos, afoitos, talvez mesmo
armados de punhais, para a levarem a Sant’Angelo e a protegerem de qualquer
malfeitoria tentada pelo celerado bispo. Porém, nada de extraordinário veio a
ocorrer no dia seguinte e nos que o sucederam. Mas em vésperas da chegada da
comitiva portuguesa a Roma, já as ruas da cidade começavam a ficar limpas e
coloridas de flores, aconteceu o imprevisto. Como de costume, o grupo de
trabalho, que integrava a companhia de Raquel Aboab, desnecessária é certo, mas
requerida pelo bispo, compareceu à hora marcada no anexo do palácio apostólico
onde, para surpresa geral, se encontravam já à conversa Francesco Petrini,
Paris de Grassis, o novo mestre-de-cerimónias da cúria romana, uns tantos diáconos
e, a um canto da sala, enroladas nos seus beatíficos hábitos, meia dúzia de
religiosas. Tratava-se da última reunião de trabalho e isso justificava a
presença de Paris de Grassis; quanto às religiosas e aos padres, ninguém
percebeu porque estavam ali, silentes, de pé, em aparente estado de abstracção
e melancolia. A reunião acabou cedo e Paris de Grassis foi o primeiro a sair.
Depois, e por sugestão de Francesco Petrini, abalaram os romanos que desde a primeira
hora haviam trabalhado na organização; minutos mais tarde o homem dispensou os
diáconos; depois juntou Raquel Aboab ao bando das religiosas e despachou os
portugueses sob o argumento de que precisava das mulheres para o acompanharem à
Capela Sistina onde, àquela hora, algumas monjas procediam à ornamentação e ao
arranjo dos altares. Senhor, interveio o tabelião português, quando Francesco
Petrini acabou de dar as ordens, a portuguesa não é monja nem nunca fez parte deste
grupo. Por isso é nosso desejo vê-la a abandonar este aposento e voltar para
casa. Espantado pela intervenção do estrangeiro, Petrini arregalou os olhos e,
de dedo em riste, exclamou que não admitia qualquer interferência nas suas
decisões. Que já falara com os secretários do Sumo Pontífice para que o
autorizassem a dispor dos vedores enviados, semanas antes, pela coroa de
Lisboa. A jovem não veio nessa qualidade, retorquiu o tabelião, usando de esforçada
calma. Mas assumiu-a aqui, nesta casa, prosseguiu o bispo, cada vez mais irritado.
Uma das religiosas, a mais velha, deu nesse momento um passo em frente e
proclamou: junto a nós e a Nosso Senhor essa mulher ficará em segurança. Um silêncio
de morte abateu-se na sala.
Pois então que nada lhe aconteça,
advertiu o português ao fim de prolongados segundos, enquanto Raquel Aboab se
encostava a uma parede chorando e soluçando. A Capela Sistina situava-se a
curta distância do anexo de Sant’Angelo. E foi para lá que Petrini, as
religiosas e a portuguesa se dirigiram de seguida». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos
de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
Cortesia de
OdoLivroE/JDACT