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O Contrato
da Carne
«(…) Fernando fora nomeado governador
por dom Pedro, o mui poderoso rei, por influência da rainha dona Maria Sofia de
Neuburgo, que o tivera como protegido. Ambos, rei e rainha, agora estavam
mortos. Que Deus os tivesse. O conde de Ericeira, também seu protector junto à
Coroa, tinha dado fim à própria vida; jogara-se de uma janela, arrebentando-se
no chão. Quem poderia, agora, levá-lo às boas graças de sua majestade? Rendom?
Frei Francisco? Seria o confessor do rei um franciscano? De que lado do clero o
novo monarca estaria? Dos jesuítas? Dos dominicanos? Teriam os senhores de
Belmonte, da família de Rendom, influência junto à nova Corte que se formava no
palácio da Ribeira? Fernando sentiu um imenso cansaço. Membros do seu conselho tentavam
persuadi-lo a conceder renovação do contrato a frei Francisco, certamente
subornados pelo pérfido trinitário. Entretanto, o rei tinha dado mostra de
estar ao lado dos descobridores paulistas, como seu real pai. Mandara, pela
frota que acabara de chegar, uma caixa contendo um presente régio da maior
magnificência e esplendor.
Está bem, senhores. Farei a carta
de suspensão e a enviarei com urgência ao senhor Borba Gato. Os paulistas
trocaram um olhar vitorioso. O governador dirigiu-se a uma câmara reservada. Entrai,
senhores. Gostaria de mostrar-vos algo. Retirou um pano preto que encobria um
quadro. A imagem apareceu diante dos olhos maravilhados dos homens: um jovem de
olhar pacífico e resoluto. Sob a pintura, a inscrição. Johannes Portugallia e Reges.
Mariana desceu a ladeira até à várzea.
Cruzou a rua Direita e entrou na casa do governador, um prédio alto, guardado
por soldados à entrada principal. As pessoas que esperavam na antecâmara tinham
o ar de pedinte astucioso ou humilde, com excepção de um franciscano, que
andava de um lado a outro, impaciente, com as mãos nas costas e que de vez em
quando parava e olhava em direcção à porta da sala onde desejava entrar. Num
banco mais afastado, dois rapazes seguravam cestas de hortaliças. Num canto, um
soldado vigiava um homem acorrentado. Mariana foi prontamente recebida após o
anúncio da sua chegada, o que causou admiração entre os que aguardavam,
certamente há longas horas, serem atendidos pelo governador. O padre lançou-lhe
um esgar irritado. Um mordomo levou-a à sala de despacho de Fernando Lancastre.
No corredor, cruzaram com o bispo. Francisco de São Jerónimo, conde de Santo
Eulálio, em brocatel de seda carmim e fio de ouro laminado, passou pela fidalga
com o cenho franzido v
cabisbaixo, sem notá-la. Fernando esperava-a em pé, na posição de alguém
prestes a servir de modelo a um pintor, o corpo erecto, a mão esquerda sobre a
mesa e a direita na cintura. Dona Mariana, curvou-se. Na presença de mulheres,
sentia olhos críticos sobre si. Há quanto tempo não nos vemos. Nunca mais vos encontrei
na missa, abandonastes as aulas de música no palácio, não viestes, em Janeiro, à
festa comemorativa da coroação de nosso rei. O que está acontecendo? Tenho ido à
missa nos Jesuítas, que é mais perto. Gosto de ficar em casa, olhando gravuras
e o movimento na várzea». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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