Cortesia
de wikipedia e jdact
A
Casa Branca Nau Preta
«(…)
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho,
nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe
manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi
um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma
interrupção lateral na minha consciência...
Continuam
encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de
as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem
atenção as minhas sensações sem nexo,
E
a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...
Quem dera
que houvesse
Um
terceiro estado p’ra alma, se ela tiver só dois...
Um quarto
estado p’ra alma, se são três os que ela tem...
A
impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me
por detrás das costas da minha consciência de sentir...
As naus
seguiram,
Seguiram
viagem não sei em que dia escondido,
E a rota
que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os
ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...
Árvores
paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores
estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores
iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder
eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,
Não poder
eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.
E
poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...
Que
sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde?
Tive essa
impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus
partem, naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre
melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o
que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E
nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...
Quem pôs
as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem
deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho
o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem
auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última
viagem, sempre para lá, das naus a subir... Não há, substância de pensamento na
matéria de alma com que penso...
Há só
janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E
o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.
Na vidraça
aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A
casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus
olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros
olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu,
parado, mole, adormecido,
Tenho
o mar embalando-me e sofro...
Aos
próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas
dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos
jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde
o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E
o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.
Caia a
noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por
acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?
Húmida
sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar
tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.
Milagre do
aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha
do enegrecimento do punhal tirado para os actos,
Os olhos
fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E
o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...
A casa
branca nau preta...
Felicidade
na Austrália...»
In
Fernando Pessoa, Poemas Completos de Álvaro de Campos, Tinta da China,
2014, ISBN 978-989-671-232-7.
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