Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Numa palavra, esta obra,
como as que a precederam, não se inscreve, pelo menos directamente ou em
primeira instância, no debate sobre a estrutura (confrontada com a génese, a
história, o devir); mas sim no campo em que se manifestam, se cruzam, se emaranham
e se especificam as questões do ser humano, da consciência, da origem e do
sujeito. Mas, sem dúvida, não estaríamos errados em dizer que aqui também se
coloca o problema da estrutura. Este trabalho não é a retomada e a descrição
exacta do que se pode ler em Histoire
de la folie, Naissance de la clinique ou Les mots et les choses. Em muitos pontos ele é
diferente, permitindo também diversas correcções e criticas internas. De
maneira geral, Histoire de la folie
dedicava uma parte bastante considerável, e aliás bem enigmática, ao que se
designava como uma experiência, mostrando assim o quanto permanecíamos próximos
de admitir um sujeito anónimo e geral da história. Em Naissance de la clinique, o
recurso à análise estrutural, tentado várias vezes, ameaçava subtrair a
especificidade do problema colocado e o nível característico da arqueologia.
Enfim, em Les mots et les choses,
a ausência da balizagem metodológica permitiu que se acreditasse em análises
em termos de totalidade cultural. Entristece-me o facto de que eu não tenha
sido capaz de evitar esses perigos: consolo-me dizendo que eles estavam
inscritos na própria empresa, já que, para tomar as suas medidas, ela mesma
tinha de se livrar desses métodos diversos e dessas diversas formas de
história; e depois, sem as questões que me foram colocadas, sem as dificuldades
levantadas, sem as objecções, eu, sem dúvida, não teria visto desenhar-se tão clara
a empresa à qual, quer queira quer não, me encontro ligado de agora em diante.
Daí, a maneira precavida, claudicante deste texto: a cada instante, ele se
distancia, estabelece as suas medidas de um lado e de outro, tateia em direcção
aos seus limites, se choca com o que não quer dizer, cava fossos para definir
seu próprio caminho. A cada instante, denuncia a confusão possível. Declina sua
identidade, não sem dizer previamente: não sou isto nem aquilo. Não se trata de
uma crítica, na maior parte do tempo; nem de uma maneira de dizer que todo
mundo se enganou a torto e a direito; mas sim de definir uma posição singular
pela exterioridade de suas vizinhanças; mais do que querer reduzir os outros ao
silêncio, fingindo que seu propósito é vão, tentar definir esse espaço branco de
onde falo, e que toma forma, lentamente, num discurso que sinto como tão
precário, tão incerto ainda.
V. não está seguro do que diz?
Vai novamente mudar, deslocar-se em relação às questões que lhe são colocadas,
dizer que as objecções não apontam realmente para o lugar em que você se
pronuncia? V. se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo
que era você se critica? V. já arranja a saída que lhe permitirá, no seu
próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não, não, eu
não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo. Como?! V.
pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me
teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse, com as mãos um pouco
febris, o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe
subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam
seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não
terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter
mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo:
é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres
quando se trata de escrever». In Michel Foucault, A
Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária,
Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
Cortesia de FUniversitária/JDACT