terça-feira, 25 de junho de 2019

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «Entristece-me o facto de que eu não tenha sido capaz de evitar esses perigos: consolo-me dizendo que eles estavam inscritos na própria empresa…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Numa palavra, esta obra, como as que a precederam, não se inscreve, pelo menos directamente ou em primeira instância, no debate sobre a estrutura (confrontada com a génese, a história, o devir); mas sim no campo em que se manifestam, se cruzam, se emaranham e se especificam as questões do ser humano, da consciência, da origem e do sujeito. Mas, sem dúvida, não estaríamos errados em dizer que aqui também se coloca o problema da estrutura. Este trabalho não é a retomada e a descrição exacta do que se pode ler em Histoire de la folie, Naissance de la clinique ou Les mots et les choses. Em muitos pontos ele é diferente, permitindo também diversas correcções e criticas internas. De maneira geral, Histoire de la folie dedicava uma parte bastante considerável, e aliás bem enigmática, ao que se designava como uma experiência, mostrando assim o quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito anónimo e geral da história. Em Naissance de la clinique, o recurso à análise estrutural, tentado várias vezes, ameaçava subtrair a especificidade do problema colocado e o nível característico da arqueologia. Enfim, em Les mots et les choses, a ausência da balizagem metodológica permitiu que se acreditasse em análises em termos de totalidade cultural. Entristece-me o facto de que eu não tenha sido capaz de evitar esses perigos: consolo-me dizendo que eles estavam inscritos na própria empresa, já que, para tomar as suas medidas, ela mesma tinha de se livrar desses métodos diversos e dessas diversas formas de história; e depois, sem as questões que me foram colocadas, sem as dificuldades levantadas, sem as objecções, eu, sem dúvida, não teria visto desenhar-se tão clara a empresa à qual, quer queira quer não, me encontro ligado de agora em diante. Daí, a maneira precavida, claudicante deste texto: a cada instante, ele se distancia, estabelece as suas medidas de um lado e de outro, tateia em direcção aos seus limites, se choca com o que não quer dizer, cava fossos para definir seu próprio caminho. A cada instante, denuncia a confusão possível. Declina sua identidade, não sem dizer previamente: não sou isto nem aquilo. Não se trata de uma crítica, na maior parte do tempo; nem de uma maneira de dizer que todo mundo se enganou a torto e a direito; mas sim de definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças; mais do que querer reduzir os outros ao silêncio, fingindo que seu propósito é vão, tentar definir esse espaço branco de onde falo, e que toma forma, lentamente, num discurso que sinto como tão precário, tão incerto ainda.

V. não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objecções não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia? V. se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo que era você se critica? V. já arranja a saída que lhe permitirá, no seu próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo. Como?! V. pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse, com as mãos um pouco febris, o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever». In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
                                                       
Cortesia de FUniversitária/JDACT