jdact
e wikipedia
A
Hora do Diabo
«(…) Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o
Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram
antes do Mundo os reis de adão que reinaram mal antes de Israel. A minha
presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de
coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser. (Então face não via
face, e não havia equilíbrio). A verdade, porém, é que não existo nem eu, nem
outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus
diversos criadores e seus diversos Satãs mais ou menos perfeitos e adestrados são
vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa
nenhuma. Tudo isto, não estou falando consigo mas com o seu filho... Não tenho
filho... Isto é, vou tê-lo daqui a seis meses, se Deus quiser... É com ele que
estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê? De quê?! Seis meses... Seis
meses solares? Ah, sim. Mas a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo não
posso contar senão por meses de Lua, que é minha filha, isto é, a minha cara
vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não tenho
nada a ver, nem sei porque graça me foram medir essas coisas pelas leis da lua
que forneci. Porque não arranjaram outra bitola? Para que é que o omnipotente
precisava do meu trabalho?
Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os
mesmos poetas por natureza meus amigos que me defendem, me não têm defendido bem.
Um inglês chamado Milton fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha
indefinida que nunca se travou. O outro, o alemão Goethe deu-me um papel de
alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas
abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não,
um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega.
Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando
criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando
mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que
dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um
fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele
é o Sol, eu sou a Lua. A minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo,
fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.
Que homem pousou sobre
os teus seios aquela mão que foi minha? Que beijo te deram que fosse igual ao
meu? Quando, nas grandes tardes quentes, sonhavas tanto que sonhavas de sonhar,
não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que
te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu! Sou eu!
Sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Talvez, no fundo imenso
do abismo, Deus mesmo me busque, para que eu o complete, mas a maldição do Deus
Mais Velho o Saturno de Jeová paira sobre ele e sobre mim, separa-nos, quando
nos devera unir, para que a vida e o que desejamos dela fossem uma só coisa. O
anel que usas e amas, a alegria de um pensamento vago, o sentires que estás bem
ao espelho em que te vês não te iludas: não és tu, sou eu. Sou eu que ato bem
todos os laços com que as coisas se decoram, que disponho certas as cores com
que as coisas se ornam. De tudo quanto não vale a pena ser, faço eu meu domínio
e o meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida
não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem
peso nem medida, isso é meu». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo,
História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8
Cortesia
AAlvim/JDACT