«(…) Quando Myriam estava quase a cumprir dezasseis anos, escrevi a sua
tia, à condessa Prisciliana, convidando-a a passar uma temporada connosco e, na
noite da sua chegada, depois de as princesas se terem retirado, combinei com
ela a melhor maneira de comunicar a Myriam quem era o seu pai; não um pobre
grão-duque sempre ameaçado pelas baionetas do Águia mas, sim, um homem famoso
em toda a Europa que, apesar de ter que se acolher à benevolência dos grandes, sabia
que o seu nome era ainda maior, cimentado numa obra imarcescível e não numa biografia
discutível. Não pude evitar que a rapariga goste de mim, porque esse foi o
desejo de sua mãe mas, como também a eduquei no sentido do dever e na fortaleza
de ânimo, julgo que, se não puseres demasiado dramatismo na revelação, a menina
receberá o seu presente de aniversário com serenidade e sem derramar uma lágrima,
ainda que talvez não com alegria. Podes também dizer-lhe que, se desejar
conhecer o pai, eu estou disposto a pagar-lhe uma viagem até Weimar, que é onde
Liszt vive agora, e a ti também, se quiseres acompanhá-la. Da têmpera que
demonstrou Myriam haveria muito a dizer se fosse coisa que se divulgasse mas
convém não esquecer que, de certo modo, apesar de seu pai ser famoso e da sua
mãe ser uma princesa reinante, a história da sua origem deveria ser, para
todos, um segredo de alcova. No próprio dia do seu aniversário, quando todos se
haviam retirado, incluindo a tia Prisciliana, que abusava do café e da palavra
e não havia quem a mandasse para a cama, apareceu Myriam, sentou-se ao meu
lado, esteve silenciosa uns minutos e disse-me, depois: senhor, quero
comunicar-lhe que hoje é o dia mais infeliz da minha vida. E eu respondi-lhe: o
facto de saberes o que sabes não muda nada entre nós.
Eu creio que muda, senhor, ainda que, de momento, talvez mude pouco. O
meu propósito é renunciar a esta situação falsa de princesa feliz e
independentizar-me paulatinamente. Como sei que Vossa Alteza me ama, não
deixarei de o consultar acerca das minhas determinações. Mas peço-lhe que
compreenda que a minha obrigação é separar-me. Queres conhecer teu Pai? É,
provavelmente, a minha obrigação; não creio que seja o meu gosto. É a primeira
coisa sobre a qual quero consultar-vos. Vai a Weimar. No regresso da viagem só
me comentou: o meu pai, senhor, é um homem admirável, apesar de muito preocupado
com a salvação da sua alma porque, ao beijar-me a fronte, me disse que eu era o
seu pecado, quando sei que tem pelo menos outros três. A tia Priscilíana
desatou a rir e chamou-me hipócrita. Mas o meu pai não se riu e vi-me numa situação
tão violenta que, para se notar menos a minha presença, me pus a meter o nariz por
aquelas bandas. Meu pai vive numa casinha com um grande salão, com um grande
piano e muitas fotografias. São todas de duquesas, de princesas, de
imperatrizes e algumas de reis.
O tampo do piano é tão brilhante, senhor, que dá gosto mirarmo-nos
nele! Sabe que estava lá a minha irmã Cósima? Não me ligou nenhuma, de modo que
pude observá-la: é feia e dura, não gostei dela. Também parece preocupar-se
muito com a salvação da alma do meu pai, mas pergunto-me como irá fazê-lo
rodeado de tantas mulheres belas e tantas recordações más. A propósito, senhor,
o retrato de minha mãe não está naquele harém. Creio que foi na época do
regresso de Myriam, ou muito pouco tempo depois, que recebi o primeiro
relatório do Incansável Observador do Mistério. Poderia ter averiguado, mas não
o fiz, quem era aquele sujeito que durante um certo tempo me enviou, com regularidade,
as notícias de tudo o que de extraordinário e maravilhoso acontecia nas terras
do grão-ducado mas, principalmente, na sua capital. A sua releitura faz-me, com
frequência, feliz e reconheço que, graças a esses papéis, vivi boa parte da
minha vida com uma porta aberta para esse mundo no qual pouca gente crê:
provavelmente com razão, mas uma das coisas que tenho aprendido é que não são
precisas razões para crer. Esse primeiro relatório dizia, textualmente: Sereníssimo
Senhor: ouvi contar a meu avô que, durante muitos anos, informou regularmente o
avô de Vossa Alteza de tudo o respeitante a alguns factos que passam
despercebidos ao comum dos vossos súbditos mas que nem por isso deixam de ter
importância para os que governam um país. Poderemos chamar-lhes, se o vocábulo
lhe agradar, premonições. Se meu avô interrompeu os seus serviços à Coroa e ao
Estado, isso deveu-se a que o sucessor de vosso avô, vosso sereníssimo pai,
jamais tenha prestado atenção a esses papéis, nem nunca tenha acreditado neles,
mas convém recordar que, em tempo de vosso pai, as coisas deste mundo andavam
melhor e os habitantes do outro estavam sossegados. Eu, que recebi de meu avô e
de meu pai a capacidade de ver, acho-me na obrigação de reatar aquele antigo
costume com a esperança, quase com a certeza, de que essas revelações serão bem
recebidas. Mas não esqueço, ao mesmo tempo, que o meu dever de súbdito é não incomodar
o soberano. Por semelhante razão, se os termos deste primeiro escrito merecerem
a atenção e o interesse de Vossa Alteza, peço-vos que, nos ofícios do domingo,
leveis a sobrecasaca cor de tabaco que tão escassamente vos favorece. Vê-la e
vislumbrar a pluma será quase o mesmo». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos,
A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha,
1995, ISBN 972-29-0326-8.
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