jdact
e wikipedia
«(…)
Ao descer as escadas para o Banco
distinguiu ao longe, perto da penumbra de sacristia a cheirar a verniz de unhas
do gabinete das assistentes sociais, criaturas feias e tristes a necessitarem
elas próprias de assistência urgente, um grupo de delegados de propaganda
médica estrategicamente ocultos nas ombreiras das portas vizinhas, prontos a
assaltarem de enxurradas palavrosas e por vezes letais os esculápios
desprevenidos ao alcance, vítimas inocentes da sua simpatia impositiva. O
psiquiatra aparentava-os aos vendedores de automóveis na loquacidade demasiado
delicada e bem vestida, irmãos bastardos que se haviam desviado, na sequência
de um obscuro acidente cromossómico de percurso, da linhagem dos faróis de iodo
para as pomadas contra o reumático, sem contudo perderem a incansável
vivacidade solícita original. Espantava-o que aqueles seres debitantes,
sempre-em-pés da boa educação, donos de pastas obesas que continham dentro de
si o segredo capaz de transformar corcundas raquíticas em campeões de triplo salto,
lhe dedicassem em chusma atenções de Reis Magos portadores de preciosas ofertas
de calendários de plástico a favor dos preservativos anti-sífilis Donald, o
inimigo público número um dos aumentos demográficos, suave ao tacto e com uma
coroa de pelinhos afrodisíacos na base, de jogos de xadrez em cartolina gabando
discretamente em todas as casas os méritos do xarope para a memória Einstein
(três sabores: morango, ananás
e bife de lombo), e de pastilhas efervescentes que rolhavam as diarreias mas
soltavam as rédeas da azia, obrigando os doentes dos intestinos a
preocuparem-se com as fervuras do estômago, manobra de diversão com que
lucravam os quartos de água das Pedras bebidos a pequeninos goles terapêuticos
nos balcões das pastelarias. Os doutores saíam-lhes das pinças ferozes a
cambalearem sob o peso de folhetos e de amostras, tontos de discursos eriçados
de fórmulas químicas, de posologias e de efeitos secundários, e vários tombavam
exaustos trinta ou quarenta metros percorridos, espalhando em redor os
perdigotos de pílulas do último suspiro. Um empregado indiferente varria-lhes
os restos clínicos para a vala comum de um balde de lixo amolgado, resmungando
baladas fúnebres de coveiro.
Aproveitando a protecção de dois polícias que escoltavam um velhote digno
com cara de ajudante de notário embrulhado nas lonas confusas de uma camisola
de forças, o médico atravessou a salvo o bando ameaçador dos propagandistas a
aliciá-lo com o canto de sereia dos sorrisos uníssonos, desdobrados como acordeões
nas bochechas obsequiosas: uma manhã destas, pensou, afogam-me num frasco de
suspensão antibiótica amigdal do mesmo modo que o meu pai possuía, nunca
entendi porquê, guardado no armário da estante, o troféu de caça do cadáver de
uma escolopendra num tubo de álcool, e vender-me-ão à Faculdade, encarquilhado
como um aborto, para figurar no mostruário de horrores do Instituto de
Anatomia, talho científico atravessado de Castelo Fantasma, com esqueletos
pendurados de ferros verticais à maneira de craveiros murchos a ampararem o seu
desânimo a pedaços de cana, olhando-se uns aos outros com órbitas vazias de
militares na reserva.
A coberto das damas de honor do ajudante de notário, cujos bigodes tremiam
de timidez autoritária, o psiquiatra ultrapassou ileso um internado alcoólico
das suas relações que todas as manhãs teimava em narrar-lhe por miúdo
intermináveis disputas conjugais em que os argumentos eram substituídos por
animadíssimas batalhas campais de caçarolas (Chiça pá dei-lhe uma azevia no
alto da piolhosa, doutorzeco de uma cana, que me ficou oito dias a cuspir
brilhantina), uma senhora magrinha da secretaria que vivia no pânico do esperma
do marido e usava interrogá-lo ansiosamente acerca da eficácia comparativa de
duzentos e vinte e sete anticoncepcionais diferentes, e um doente de barbas
bíblicas de neptuno de lago que nutria por ele uma admiração entusiástica feita
de panegíricos vociferantes, todos mantidos a respeitosa distância pelas aias
da camisola de forças, comunicando ao ouvido peludo um do outro os respectivos
hálitos de alho». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979,
1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT