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«(…) Fiz-lhe sinal para continuar a correr e escondi-me. O
soldado estava de olhos postos no árabe e nem me vira. Mal Muhammed passou por
mim, lancei uma trave à cara do soldado, que caiu, desmaiado. Para minha
desilusão, a pistola voara, caindo no meio do entulho, e não a consegui
descobrir. Retirei-lhe apenas uma faca e corri também para a rua, onde
encontrei Muhammed à minha espera, recuperando o fôlego. O que ir passar?,
perguntou o árabe, assustado. Um tremor de terra. Levou as mãos à cabeça, sem saber
o que dizer, os olhos aterrados a observarem o caos à nossa volta. Deixou-se
ficar a arfar, até que comentou: sorte nós ir estar vivos. Vamos, disse eu, e
comecei a andar. Não, gritou Muhammed. Olha, Santamaria! Quarenta metros à
nossa frente, o Cão Negro e dois dos seus rufias roubavam roupas aos cadáveres,
na rua. Ao ouvir o grito de Muhammed, o gigante olhou para nós. Furioso,
apontou a espingarda e disparou um tiro. Não nos acertou, mas mudámos
imediatamente de direcção e corremos antes para a Sé de Lisboa. Ao olhar para
trás, pela última vez, Muhammed informou-me: eles ir seguir nós! Eles ir atrás nós!
Nas primeiras horas a seguir ao terramoto, e ainda muito
antes de nos termos conhecido, cada um viveu a sua história de confusão, dor e
sobrevivência. Eu e Muhammed, o rapaz, o inglês, a escrava negra e também irmã
Margarida, tínhamos tido sorte. Os caprichos do destino haviam-nos poupado, ao
contrário do que se passou com milhares de habitantes da cidade. Um ano depois,
no momento desta memória, há quem fale em sessenta mil mortos, há quem fale no
mínimo em trinta mil. Bernardino, ajudante de Sebastião José, quando veio
ver-me disse que só tinham morrido quinze mil, o número oficial de
mortos, mas isso é porque o todo-poderoso ministro quer diminuir a importância
da tragédia, por razões políticas. Acho que nunca ninguém terá a certeza de
quantos morreram naquele terramoto e nos dias seguintes, mas foram muitos.
Durante dias, convivemos com os corpos putrefactos e os cadáveres empilhados.
Sim, foi uma espécie de inferno, acho que posso usar essa palavra para
descrever o que vi. Mas, como disse, todos os vivos tinham a sua narrativa
pessoal de resistência. O facto de termos sobrevivido criou entre nós uma
cumplicidade especial, que nos aproximava e humanizava, apesar dos conflitos desses dias. E é por isso
que vale a pena recordar essas histórias.
Irmã Margarida, por exemplo, depois dos
abalos perdeu a noção do tempo. Por vezes, contou-me, sentia-se acordada,
embora confundida e atordoada. Noutras, sentia-se a sonhar, num mundo
fantástico onde só existiam dor e fogo e nuvens de pó e gritos. O corpo
doía-lhe, as pernas, as costas, as clavículas, o alto da cabeça e também o
pescoço. A corda estava ainda apertada à volta da garganta, embora já não a
asfixiasse. Apesar de saber que caíra, no seu cérebro reinava enorme
baralhação, e não sabia explicar porque estava ali, nem o que se passara. Ao
fim de algum tempo, as forças voltaram-lhe, e conseguiu libertar-se do
amontoado de destroços que a cobria. Sentou-se, a respirar com dificuldade.
Havia muita poeira no ar e tossia constantemente, com a garganta áspera, como se
a tivessem obrigado a mastigar terra. Um silêncio angustiante abatera-se sobre
a prisão, entrecortado por horríveis gemidos. Quando o estado de choque a
abandonou, lembrou-se da tentativa de enforcamento, abruptamente interrompida
pelo ruir do tecto da cela. O que teria acontecido? Irmã Margarida apenas sabia
que estava viva, que não morrera enforcada, e portanto amanhã iria morrer
queimada, acontecesse o que acontecesse. Contou-me que este pensamento a
desanimou e desejou de novo matar-se.
Melhor seria esmagar a cabeça com uma daquelas pedras. Assim, pensariam que
tinha morrido no desmoronamento do Palácio da Inquisição (maldito). De súbito, viu novamente o fantasma, a sombra negra e
escura, aproximando-se. A visão turvou-se e sentia-se tonta e enjoada. Passou
as mãos pelo cabelo, e descobriu-o pastoso e quente. Examinou as mãos: pareciam
pintadas com o vermelho do sangue, que escorria de uma ferida do lado direito
da cabeça. Devia ter batido numa pedra, após a queda, e fechou os olhos,
satisfeita. Ia mesmo morrer». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu,
Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre,
Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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