sexta-feira, 21 de junho de 2019

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Ainda não me esqueci do caso, senhora, atalhou Briolanja ao aperceber-se do que a jovem queria dizer com a história do falso sonho. Eu sei que sim, boa amiga…»

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«(…) Palavras mais desenganadoras do que estas não podia ter ouvido. Talvez Leonor preferisse que Briolanja lhe dissesse que as estrelas tinham confirmado a conquista por parte dela de um rei e de um trono para assim poder sonhar com um mundo fantástico, improvável que fosse, impossível que se revelasse. Pena que a verdade fosse tão dolorosa e que só mesmo a mentira lhe fizesse idealizar o cume de uma alcáçova e lhe consentisse a ideia de que o discreto estatuto de senhora do morgado de Pombeiro era apenas provisório e não definitivo. Depois de alguns momentos de reflexão, com ar sério e num tom de voz indisfarçavelmente cínico, fitou a ama e disse: também tive um sonho esta noite. Vê lá tu que sonhei que o meu desalmado esposo se sentiu mal por causa de uma coisa que bebeu misturada no vinho. Durante alguns instantes fez-se um silêncio quase absoluto, deixando as duas mulheres inertes e frias como as grandes rochas da serrania defronte à casa.
Ainda não me esqueci do caso, senhora, atalhou Briolanja ao aperceber-se do que a jovem queria dizer com a história do falso sonho. Eu sei que sim, boa amiga, sei que tens boa cabeça, mas agora fecha a porta e deixa-me sozinha.
Passaram-se entretanto quatro semanas sobre este episódio sem que o dono da casa sentisse qualquer indisposição súbita ou o professor Vicente Esteves desse sinal de vida. Certa tarde, já Leonor tinha perdido a esperança de ter o lente como hóspede, apareceu ele encharcado da chuva e sem bagagens, com um braço tolhido de dor e um golpe na testa. Que aconteceu?, perguntou a dama, incrédula e assustada, quando viu o homem naquele estado à porta de casa. Entre, senhor, entre e vá à lareira enxugar-se e aquecer-se. Vicente Esteves contou que fora assaltado por quatro homens, armados de punhais, quando estava já a pouco menos de duas léguas de Pombeiro e que os ferimentos no braço e na cabeça tinham sido causados pela violência das pancadas que sofreu antes de lhe levarem o animal em que se transportava, o capeirote que o protegia do frio e até mesmo os livros para o trabalho que pretendia realizar. Impressionadas com o relato do homem, Briolanja Mendes, que assistia à conversa junto ao umbral da porta, persignou-se logo que ele deu por findo o relato, enquanto Leonor Teles se benzia e proclamava in nomine patris et filii et spritus sancti. Amen.
Visivelmente abatido, destroçado, de pé junto à lareira, Vicente Esteves olhou para Leonor e com um ar doce e cândido comentou: isto passa, senhora, o pior de tudo são os livros que me levaram e que dificilmente conseguirei reaver. Sem eles, terei de voltar para Coimbra tão depressa o tempo amaine e tenha para a viagem alguém por companhia. Leonor estremeceu. Ela, que tinha esperado mais de um mês por aquele homem de boas regras e melhores costumes, discreto, sereno, prazenteiro, estava a um pequeno passo de o perder, quem sabe se de uma vez por todas, por causa de um grupo de miseráveis plebeus endemoninhados a quem só a morte violenta, na sua opinião, serviria como castigo para tamanho crime. E o seu estimado esposo, senhor João Lourenço, onde está?, perguntou Vicente Esteves. Esse foi para a caça sem receio de que a chuva o molhe ou os criminosos o assaltem, respondeu com um sorriso, mas num tom de voz desprezível». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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