terça-feira, 30 de julho de 2019

A Obscena Senhora D. Hilda Hilst. «Para poder morrer visto as cambraias e apascento os olhos para novas vidas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Respiro e persigo uma luz de outras vidas».

«E ainda que as janelas se fechem, meu pai
É certo que amanhece».

«Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.

Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Destruídas.

Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.

Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.

Porque assim é preciso
Para que tu vivas».

«Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição, pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vazio, buscava nomes, tacteava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis quotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê?, isso de vida e morte, esses porquês escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hen? E apalpava, escorria os dedos na minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pe…, no meu mais fundo, dura boca de Ehud, fina húmida e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria tanto falar, não, não faz agora, Ehud, por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia-a-dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo. Agora que Ehud morreu vai ser mais difícil viver no vão da escada, há um ano atrás quando ele ainda vivia, quando tomei este lugar da casa, algumas palavras ainda, ele subindo as escadas  Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada?, está ouvindo Hillé olhe, não quero aborrecer-te, mas a resposta não está aí, ouviu?, nem no vão da escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que não entende que não há resposta? Não, não compreendia nem compreendo, no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo, num grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de estrume, um dia. um dia, um dia…
Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito, te deita, te abre, finge que não quer mas quer, me dá tua mão, te toca, vê?, está toda molhada, então Hillé, abre, me abraça, me agrada.
Engolia o corpo de Deus, devo continuar engolia porque acreditava, mas nem por isso compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso, Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. Só isso, Senhora D? Compreender o jogo brinquedo do Menino Louco, pensa um pouco, Hillé, pensa no sinistro lazer de uma criança louca, ou pensa em crianças brincando com gatinhos, com ratos, com tristes cadelas vadias, ó vinde a mim as criancinhas, que sabemos nós de criancinhas? Como pôde dizer isso, ele que dizia que muito sabia?» In Hilda Hilst, A Obscena Senhora D., Joroncas, 1981, Wikipedia.

Cortesia de Joroncas/JDACT