Cortesia
de wikipedia e jdact
«Respiro e
persigo uma luz de outras vidas».
«E ainda
que as janelas se fechem, meu pai
É certo
que amanhece».
«Para
poder morrer
Guardo
insultos e agulhas
Entre as
sedas do luto.
Para poder
morrer
Desarmo as
armadilhas
Me estendo
entre as paredes
Destruídas.
Para poder
morrer
Visto as
cambraias
E
apascento os olhos
Para novas
vidas.
Para poder
morrer apetecida
Me cubro
de promessas
Da
memória.
Porque
assim é preciso
Para
que tu vivas».
«Vi-me
afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem por isso irei à
sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A
Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira
silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me
dizia, Derrelição, pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo,
abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te
chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono, desde sempre a
alma em vazio, buscava nomes, tacteava cantos, vincos, acariciava dobras, quem
sabe se nos frisos, nos fios, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis quotidianos,
no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o
destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê?, isso de vida e morte,
esses porquês escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses
luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hen? E apalpava, escorria os dedos
na minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pe…, no meu mais fundo, dura boca
de Ehud, fina húmida e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria tanto
falar, não, não faz agora, Ehud, por favor, queria te falar, te falar da morte
de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia-a-dia que vão
consumindo a melhor parte de nós, queria falar do fardo quando envelhecemos, do
desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo. Agora
que Ehud morreu vai ser mais difícil viver no vão da escada, há um ano atrás
quando ele ainda vivia, quando tomei este lugar da casa, algumas palavras
ainda, ele subindo as escadas Senhora D,
é definitivo isso de morar no vão da escada?, está ouvindo Hillé olhe, não
quero aborrecer-te, mas a resposta não está aí, ouviu?, nem no vão da escada,
nem no primeiro degrau aqui de cima, será que não entende que não há resposta?
Não, não compreendia nem compreendo, no sopro de alguém, num hálito, num olho
mais convulsivo, num grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de
coisas secas, de estrume, um dia. um dia, um dia…
Quando
Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois
peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro
d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não
quero mais ver coisa muito viva, peixes lustrosos não, nem gerânios maçãs
romãs, nem sumos, suculências, nem laranjas Engolia o corpo de Deus a cada mês,
não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como
quem sabe que engole o Mais, o Todo, o Incomensurável, por não acreditar na
finitude me perdia no absoluto infinito, te deita, te abre, finge que não quer
mas quer, me dá tua mão, te toca, vê?, está toda molhada, então Hillé, abre, me
abraça, me agrada.
Engolia o
corpo de Deus, devo continuar engolia porque acreditava, mas nem por isso
compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso,
Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome,
engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. Só
isso, Senhora D? Compreender o jogo brinquedo do Menino Louco, pensa um pouco,
Hillé, pensa no sinistro lazer de uma criança louca, ou pensa em crianças
brincando com gatinhos, com ratos, com tristes cadelas vadias, ó vinde a mim as
criancinhas, que sabemos nós de criancinhas? Como pôde dizer isso, ele que
dizia que muito sabia?» In Hilda Hilst, A Obscena Senhora D.,
Joroncas, 1981, Wikipedia.
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Joroncas/JDACT