Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
A íris vai para começar a chorar, mas a minha mulher
consegue contê-la. Diz-lhe: pronto, pronto. E enrola-lhe a mão pequena numa
tira de ligadura que prende com fita adesiva. Depois, encontra um instante para
lhe passar os dedos pelo cabelo: ternura: e, devagar, aproxima-lhe os lábios da
testa. Sorri-lhe: já passou. A íris fica em bicos de pés, com o queixo erguido
sobre o lavatório, enquanto a minha mulher lhe lava a cara ainda desordenada pelo choro. Sente-lhe o rosto.
Sente-lhe o rosto através da toalha de pano turco e, só depois, pousando-lhe
uma mão sobre o ombro, pergunta como é que o móvel caiu. Era a boneca, diz a
íris. A minha mulher percebe que a nossa neta quis subir ao armário para tirar
a boneca, vestida de nazarena, que a Maria tinha a enfeitar uma das estantes do
armário. É uma boneca de plástico que a Maria comprou numa excursão. Tem as
sete saias das mulheres dos pescadores da Nazaré e um chapéu preto sobre um
lenço de flores. Tem pestanas pintadas sobre os olhos pintados. Está descalça
sobre uma base redonda que diz: recordação da Nazaré. Apesar de todas as vezes
que a avó lhe ralhou, a íris tem uma cegueira desmedida por aquela boneca.
Quando a minha mulher começa a preparar-se para lhe ralhar, tocam à campainha. Mais
uma vez, o seu coração. Já passa da hora em que o carteiro poderia tocar à
campainha, é cedo para a hora de almoço da nossa filha e não é costume haver
outras visitas durante todo o dia. A minha mulher deixa a íris a esperá-la na
casa de banho.
Não
mexas em nada, diz-lhe, brusca. E avança pela alcatifa do corredor. Como se uma
ideia caminhasse também pelo corredor, viesse na sua direcção e se cruzasse com
ela, passa-lhe pela cabeça que quem está a tocar à campainha pode ser a mesma
pessoa que lhe telefonou há minutos. Pode ser alguém que precisa de avisá-la de
uma notícia terrível que já aconteceu,
que a deitará por terra: a morte: que a destruirá: a morte: que a condenará
outra vez. Tenta afastar esse pensamento negro. Carrega no botão que abre a
porta da rua lá em baixo e, nesse instante, escuta o eco eléctrico da porta a
abrir-se na entrada do prédio. Espera. Tenta distinguir os passos que deveriam
agora entrar no prédio, ou que deveriam agora subir os degraus de mármore, mas,
em vez disso, ouve três batidas na porta de cima: a pouca distância de si: três
batidas firmes na madeira. Com o susto, alarmada, pergunta: quem é? Mas ninguém
responde. Volta a perguntar: quem é? Mas ninguém responde.
A
pensão Flor de Benfica não era muito distante. Foi a vontade que tinha de
chegar que fez com que, nesse dia o caminho me parecesse tão longo. As ruas de
Benfica que conhecia desde sempre, eram novas porque não conseguia vê-las.
Enquanto caminhava, não reparava nos cães abandonados e sarnosos que se
encostavam às paredes, amedrontados, com as pálpebras pesadas sobre os olhos;
nem nas casas em ruínas, com vidraças partidas à pedrada e com paredes pintadas
de cinzento pelo tempo; nem nas crianças, sujas, de cabelo rapado por causa dos
piolhos, que puxavam as mangas dos casacos das mulheres e que lhes estendiam a
palma da mão. Era sábado e o início da tarde trazia movimento às ruas. Passavam
mais automóveis do que era habitual: apitavam cornetas e assustavam as velhas,
que davam saltos debaixo dos xailes e praguejavam. Grupos de miúdos descalços
corriam atrás de arcos de ferro: o som da varinha a deslizar no
interior do arco. Raparigas levavam alcofas de fazer mandados no ângulo do
braço e desviavam o rosto corado quando passavam à porta dos cafés. Alheio a
tudo isso, eu continuava a caminhar e prestava atenção às imagens que apenas
existiam dentro de mim ou que seriam o mundo todo se, por acaso, tivesse
fechado os olhos: o rosto do meu tio de manhã, o meu rosto quando chegava a
casa ao início do serão e o rosto do italiano quando lhe comunicasse que o
piano estava pronto. Nas duas manhãs anteriores, desde que o piano chegara à
oficina, quando eu entrava no alto da rua, via logo o meu tio encostado ao
portão, a esperar-me. Tinha um ar esperto e, ainda à distância, já lhe começava
a distinguir o sorriso infantil. Quando eu me aproximava com a chave, ele
dava-me uma palmada nas costas e, assim que abria o portão, passava-me à frente
e caminhava directo para o piano. Ao fim do dia, nem por uma vez ficou na
taberna. Antes de subir ao poial da minha casa, via-o descer a rua e
afastar-se, fechado nas suas cismas, na direcção do quarto onde, nessa altura,
morava. Era o início do serão quando eu, na casa onde jantava sozinho, enchia a
bacia e, depois de lançar as duas mãos cheias de água sobre o rosto, parava-me
a olhar para o espelho pequeno do lavatório. Dentro dos meus olhos, distinguia
um sentimento que só então começava a conhecer e que me fazia inventar toda a
espécie de sonhos». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006,
Bertrand Editora, QuetzalEditora, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
Cortesia de QuetzalE/JDACT