Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Decidiu
que mandaria pintar a casa. Com os
olhos contava os velhos e revia os mínimos detalhes para garantir o cumprimento
das suas ordens. Nenhum deles faltava, excepto aquele infeliz depressivo que
continuava de cama, mais morto de angústia do que vivo. Atentou também nas
enfermeiras, reparando nos aventais limpos e engomados, os cabelos presos e as
sapatilhas de borracha. Sorriu satisfeita, pois tudo funcionava bem e tinha
passado o perigo das chuvas, com o seu cortejo de epidemias, sem lhe levar
cliente algum. Com um pouco de sorte, teria a renda assegurada por mais uns
meses, já que até o doente mais debilitado poderia sobreviver todo o Verão. Do
seu observatório, Beatriz avistou a filha, Irene, entrando no jardim A Vontade
de Deus. Verificou com desgosto que não utilizava a porta lateral de acesso ao
andar particular e à escada do apartamento do segundo andar, onde tinham
instalado a sua moradia. Fizera construir uma entrada à parte especialmente
para não passar pelo lar dos idosos quando chegava ou saía de casa, porque a
decrepitude a deprimia e preferia espreitá-la de longe. A filha, pelo contrário, não perdia a
oportunidade de visitar os hóspedes, como se sentisse prazer na companhia
deles. Parecia ter descoberto uma linguagem para vencer a surdez e a memória
fraca. Agora mesmo circulava entre eles, distribuindo guloseimas moles por
causa das dentaduras postiças. Observou-a aproximando-se do paralítico,
mostrando-lhe uma carta, ajudando-o a abri-la, porque ele não podia fazê-lo com
a sua única mão sã. Viu-a a seu lado cochichando. Depois, deu um rápido passeio
com outro senhor velho e, embora da sacada a mãe não ouvisse as suas palavras,
imaginou que falavam do único tema que interessava o homem: o filho, a nora e o
bebé. Irene dedicou a cada um deles um sorriso, um carinho, uns minutos do seu
tempo, enquanto na sacada Beatriz pensava que nunca chegaria a entender essa
jovem extravagante com quem tinha pouco em comum. De repente o avô lúbrico
aproximou-se de Irene e colocou as duas mãos nos seus seios, apertando-os mais
por curiosidade do que por lascívia. Ela deixou-se ficar imóvel por instantes,
que, para a mãe, pareciam não ter fim,
até que uma das enfermeiras percebeu a situação e correu para intervir.
Porém, Irene deteve-a com um gesto. Deixe-o. Não faz mal a
ninguém, sorriu. Beatriz deixou o seu posto de observação mordendo os lábios.
Dirigiu-se à cozinha, onde Rosa, a empregada, cortava as verduras para o
almoço, embalada pela novela da rádio. Tinha o rosto redondo, moreno, sem
idade, os seios fartos, a barriga mole, as coxas enormes. Era tão gorda que não
podia cruzar as pernas nem lavar as costas sozinha. Como limpas o teu traseiro,
Rosa?, perguntava-lhe Irene em miúda, maravilhada diante desse enorme volume
acolhedor que a cada ano aumentava um quilo. Mas que ideias tens, criatura!
Gordura é formosura, respondia Rosa, imutável, fiel ao seu costume de falar
usando provérbios. - Irene preocupa-me, disse a patroa, sentando-se num
tamborete e tomando lentamente o sumo.
Rosa não respondeu nada, mas desligou o rádio, convidando-a
à confidência, e a senhora suspirou, tenho de falar com a minha filha, não sei
no que anda metida, nem quem são esses vagabundos que lhe fazem companhia.
Porque não vai ao clube jogar ténis e aproveita para conhecer jovens da sua
própria categoria? Com a desculpa do trabalho, faz o que lhe apetece, o
jornalismo sempre me pareceu um trabalho suspeito, próprio de gente baixa; se o
noivo soubesse das coisas que acontecem a Irene, não aguentaria, porque a
futura esposa de um oficial do Exército não se pode dar a esses luxos. Quantas
vezes já lhe disse? E não me digam que cuidar da reputação está fora de moda,
os tempos mudam, mas não tanto. Por outro lado, Rosa, agora os militares
pertencem à melhor sociedade, não são como dantes. Estou cansada das
extravagâncias de Irene, tenho muitas preocupações, a minha vida não é fácil,
sabes bem como é. Desde que Eúsebio se foi embora, deixando-me com as contas
bancárias bloqueadas e uma série de gastos dignos de uma embaixada, tenho de
fazer milagres para me manter a um
nível decente; mas tudo é muito difícil, os velhos são um peso, afinal de
contas acho que dão mais dispêndio e cansaço do que lucros, custa muito
fazê-los pagar a conta, sobretudo essa maldita viúva, sempre atrasada com a
mensalidade». In Isabel Allende, De Amor e de Sombra, 1984, Porto Editora,
ISBN 978-972-004-247-7.
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