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de wikipedia e jdact
«(…) Na escrivaninha, junto a um
pote com vários cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma
partida inconclusa. Apesar de sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor
Urbino não resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite
anterior, pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo
menos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até ao final e
guardava depois o tabuleiro e as pedras na sua caixa, e guardava a caixa numa
gaveta da escrivaninha. Sabia que jogava com as peças brancas, e aquela vez era
evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro jogadas mais. Se tivesse sido
um crime, aqui haveria uma boa pista, disse a si mesmo. Só conheço um homem
capaz de compor esta emboscada de mestre. Não teria podido viver sem averiguar
mais tarde por que aquele soldado indómito, acostumado a se bater até à última
gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida.
Às seis da manhã, quando fazia a
última ronda, o guarda-nocturno tinha visto o letreiro pregado na porta da rua:
Entre sem tocar e avise a polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o
estudante, e ambos tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra
o bafo inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que durou a
análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre os papéis da
escrivaninha um envelope dirigido ao doutor Juvenal Urbino, e protegido por
tantos selos de lacre que foi necessário despedaçá-lo para tirar a carta. O
médico afastou a cortina preta da janela para ter melhor luz, lançou primeiro
um olhar rápido às onze folhas escritas dos dois lados com uma caligrafia
caprichada, e logo que leu o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a
comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em
várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou parecia regressar
de muito longe e de muito tempo. O seu abatimento era visível, apesar do
esforço que fazia para ocultá-lo: tinha nos lábios a mesma coloração azul do
cadáver, e não pôde dominar o tremor dos dedos quando tornou a dobrar a carta e
a guardou no bolso do colete. Então lembrou-se do comissário e do médico jovem,
e sorriu aos dois das brumas do seu abatimento.
Nada de particular, disse. São as
suas últimas instruções. Era uma meia verdade, mas eles acreditaram, porque ele
lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um
caderno de contas muito usado onde estavam as chaves para abrir o cofre-forte.
Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia de sobra para os gastos do
enterro e para saldar outros compromissos menores. O doutor Urbino já estava
então consciente de que não conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho. É
a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho uso de razão, disse.
Mas Deus entende.
Preferiu por isso demorar mais
uns minutos para deixar todos os pormenores esclarecidos, embora mal pudesse
suportar a ansiedade de compartilhar com a sua esposa as confidências da carta.
Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade,
caso quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado como o
mais respeitável de todos, o mais activo e radical, mesmo depois de se tornar
demasiado evidente que havia sucumbido à sedimentação do desencanto. Também
avisaria seus parceiros de xadrez, entre os quais havia tantos profissionais
insignes como artesãos obscuros, e a outros amigos menos assíduos, mas que
talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha
resolvido que ele era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de
nada. De todas as maneiras iam mandar uma coroa de gardênias, pois podia ser
que Jeremiah de Saint-Amour tivesse tido um último minuto de arrependimento. O
enterro seria às cinco, que era a hora propícia nos meses de mais calor. Se
precisassem dele estaria desde as doze na casa de campo do doutor Lácides
Olivella, seu discípulo amado, que aquele dia celebrava com um almoço de gala
as bodas de prata profissionais. O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil
de seguir, desde que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros
embates, e conseguiu uma respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na
província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar os
seus remédios secretos: brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos
para as dores dos ossos em tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as
vertigens, beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre
às escondidas, porque na sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário
a receitar paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores
alheias que as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que
aspirava fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de
tantos remédios misturados». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos
de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.
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