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A
Letra Pitagórica
«(…) Sabes o que diz o melro,
Diogo perguntava-me. Que é? E eu muito depressa, acentuando as vogais, a voz
ora em flauta ora em assobio: cereja bical, cá pró meu papo real! Cereja
negrita, esforrica, esforrica, esforrica!... Diogo ria: onde aprendeste isso?
Era do povo. Algures o ouvira, quando era pequeno, mas não sabia onde... Saltava-nos
aos pés um coelho, uma lebre fugia disparada à nossa frente pelo brejo fora, ou
um bando de perdizes afastava-se lesto caminhando solidárias pelo mato. Um
simples escaravelho, empurrando vagarosamente a sua enorme bola de esterco, nos
fazia parar, ou um formigueiro escavado na vereda ou a borboleta variegada que
pousava perto de nós. A meio caminho, na encosta da serra, sentamo-nos à sombra
de uma mimosa e, enquanto olhávamos ao longe, na fímbria do mar, o lugar de
Portimão, fazíamos as honras ao farnel que os bons dos frades em Lagos nos
tinham dado para a jornada. Em seguida retomámos a caminhada, apenas
interrompida quando, ante um fio de água que brotava das rochas, saciávamos a
sede. Anda que anda na contemplação das maravilhas de Deus caía o dia sem quase
darmos conta e sem cansaço. Quando chegámos ao alto de um monte dos muitos que
compõem a serra de Monchique e começamos a dobrar a encosta, avistamos a velha
cidade, o violeta crepuscular das colinas a coroarem o castelo, muralhas de
pedra avermelhada, polida, faiscante sob os raios de sol que abrasavam,
cingindo de fogo a brancura do casario baixo. Era uma jóia de ouro e prata
engastada na púrpura dos montes em anfiteatro.
Descemos
rapidamente a vertente, observando o manso rio a deslizar rumorejante entre
choupos esguios, hortas viçosas, suculentos pomares e jardins floridos que a ponte
romana, fulva, galgava com leveza. Silves, a moura encantada!... Tinha lido alguma
coisa do seu passado e sabia que antes desta Silves outra existira, nostálgico
paraíso de árabes, cantada por dúlcidos poetas, que o tempo, os terremotos, as
guerras, a depredação dos homens haviam feito quase totalmente desaparecer. Seguimos
na correnteza do canal que abastece de água a cidade e chegámos junto de um
lindo cruzeiro lavrado em pedra calcária, brancura realçada pelo verde-negro
aprumado dos ciprestes em roda. De um lado apresentava a imagem de Cristo
crucificado, na outra face depois de descido da cruz, nos braços de sua Mãe.
Atravessada a ponte sobre o rio Arade, passamos pela Ermida da Senhora dos
Mártires, que era do tempo de Sancho I, e admiramos então toda a imponência das
muralhas, com suas torres e adarves, a guarnição das ameias, a torre de menagem
e, na praça de armas, a lendária cisterna da moura.
Caminhamos pelas ruas já desertas
e a grande mole da sé catedral, com a sua formosa ábside de estranhas gárgulas,
as suas frestas estreitas, os seus botaréus quadrados, a sua portada de
arquivolta, em ogiva, pesava sobre nós como a noite que vinha caindo. Urgia
tomarmos pousada, o que não foi coisa difícil. Os nossos irmãos franciscanos
encontram-se espalhados por toda a parte. Outra vez de lombada na manhã
seguinte a caminho de Tavira. Como a distância era muito grande, fizemos uma
paragem em Loulé, que era condado desde o tempo de el-rei Afonso V, mas havia
recentemente voltado ao senhorio da coroa. A gente da vila estava ainda
fortemente emocionada com os acontecimentos que ocasionaram tal facto. Não
falava noutra coisa quando encontrava algum forasteiro, como nós, que ainda não
estivesse a par de tão extraordinário sucesso. Foi assim que ouvimos, em mais
de uma versão, a estranha história do casamento do infante Fernando, filho mais
novo de el-rei Manuel I, com a condessa de Marialva e de Loulé, dona Guiomar
Coutinho.
Não devia ter casado!, dizia uma
mulherzinha que lavava roupa num tanque, à sombra de uma frondosa figueira,
onde tínhamos parado a matar a sede. Pudera!, dizia outra, sem deixar de
esfregar uma saia ensaboada. Ela já tinha casado com outro!... Aquilo era a
puxar conversa, a ver se nós arrebitávamos a orelha da curiosidade, se
perguntávamos alguma coisa, que o que elas queriam era dar à língua. Mas nós,
fiúzas, moita! Elas continuavam: ó mulher, eu ainda tremo toda só de pensar!...
Deus não perdoou! Não, que o pecado era de alto lá com ele! Cruzes canhoto! Eu
quanto a mim foi castigo de mais. Morrerem assim os filhos, marido e mulher no
espaço de um mês!... Era um coito danado! ...Sabe-se lá se ela não falou
verdade e era o outro que estava a mentir dizendo que tinha casado com ela a
furto? A mentir o senhor marquês de Torres Novas? Um senhor daqueles, neto de
rei? Ora! Não me venhas com essa, mulher! Eu seja ceguinha se o que ele disse
não é verdade... E vede como ele anda! Afastou-se da corte e os anos vão passando
e ele não há meio de receber mulher... Lá isso é verdade!
Aquilo
é paixão assolapada que lhe rói o peito... A mim ninguém me tira da cabeça que
ela era aleivosa, dizia a primeira, torcendo com gana uma camisa como se tivesse
nas mãos o pescoço da infeliz». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT