segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Nenhum dos presentes ousara mexer um dedo, nessa ocasião, e também assim era agora. Bernat começou a arrastar-se e ergueu o olhar em direcção ao seu senhor…»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Sacudido por convulsões, Bernat vomitou sobre os cereais armazenados até as tripas quase lhe saírem pela garganta. Francesca continuava sem se mexer. Bernat saiu a correr daquele lugar. Quando chegou lá abaixo, pálido, a sua cabeça era um turbilhão de sensações, cada uma mais repugnante que a anterior. Cego, caiu de bruços contra o imenso Llorenç, que estava de pé ao fim das escadas. Não me parece que o novo marido tenha consumado o matrimónio, disse Llorenç de Bellera para os companheiros. Bernat teve de levantar a cabeça, para enfrentar o senhor de Navarcles. Não... Não fui capaz, senhor, balbuciou. Llorenç de Bellera guardou silêncio durante uns instantes. Pois então, se tu não foste capaz, estou certo de que algum dos meus amigos..., ou dos meus soldados..., o será. Já te disse que não quero mais bastardos. Não tem o direito! Os camponeses que observavam a cena sentiram calafrios ao imaginar as consequências de tal insolência. O senhor de Navarcles agarrou Bernat pelo pescoço, com uma só mão, e apertou com força enquanto Bernat abria a boca, tentando respirar. Como te atreves? Por acaso pretendes aproveitar-te do legítimo direito do teu senhor de se deitar com a noiva para depois vires reclamar com um bastardo debaixo do braço?, Llorenç sacudiu Bernat antes de o deixar cair para o chão. É isso que pretendes? Os direitos de vassalagem sou eu que os determino; eu e só eu, entendes? Esqueces que te posso castigar quando e como queira? Llorenç de Bellera esbofeteou Bernat com força, atirando-o ao chão. O meu chicote!, gritou, encolerizado.
O chicote! Bernat ainda era apenas um rapazinho quando, como tantos outros, fora obrigado a presenciar, com os pais, o castigo público infligido pelo senhor de Bellera a um pobre desgraçado cuja falta nunca ninguém chegou a saber com certeza qual fora. A recordação do estalar do couro sobre as costas desse homem soou-lhe nos ouvidos, como nesse dia, e como noite após noite durante uma boa parte da sua infância. Nenhum dos presentes ousara mexer um dedo, nessa ocasião, e também assim era agora. Bernat começou a arrastar-se e ergueu o olhar em direcção ao seu senhor; este estava de pé, como uma ingente massa de pedra, com a mão estendida, esperando que um servo lhe colocasse lá o chicote. Recordou-se das costas em carne viva daquele desgraçado: uma grande massa sanguinolenta de onde nem mesmo todo o ódio do senhor conseguiria arrancar um pedaço mais. Bernat arrastou-se, de gatas, para a escada, com os olhos revirados e tremendo, tal como lhe acontecia desde pequeno, quando era assaltado por pesadelos. Ninguém se mexia. Ninguém falava. E o Sol continuava a rebrilhar. Lamento, Francesca, balbuciou quando chegou perto dela, depois de subir penosamente a escada, seguido por um soldado.
Desapertou as calças e ajoelhou-se ao lado da esposa. A rapariga não se tinha ainda mexido. Bernat observou o seu pénis flácido e perguntou-se como poderia cumprir as ordens do seu senhor. Com apenas um dedo, acariciou suavemente as costas nuas de Francesca. Francesca não respondeu. Tenho... Temos de fazer isto, instou Bernat, agarrando-lhe um pulso, para a voltar para si. Não me toques!, gritou-lhe Francesca, abandonando o seu alheamento. Vai custar-me! Bernat virou com violência a sua mulher, descobrindo o corpo nu dela. Deixa-me! Lutaram, até que Bernat conseguiu agarrá-la por ambos os pulsos e prendê-la. Mesmo assim, Francesca resistia. Virá outro!, sussurrou-lhe. Se não for eu, será outro a..., forçar-te! Os olhos da rapariga ganharam vida e abriram-se de novo, acusadores. Lamento muito, lamento muito..., desculpou-se.
Francesca não parou de se debater, mas Bernat deitou-se sobre ela com violência. As lágrimas da rapariga não foram suficientes para arrefecer o desejo que nascera nele, ao contacto com o corpo da jovem, e penetrou-a enquanto Francesca gritava contra o Universo inteiro. Esses gritos satisfizeram o soldado que seguira Bernat e que, sem qualquer pudor, contemplava a cena, com metade do corpo surgindo por entre as tábuas do chão, na abertura da escada. Ainda Bernat não tinha terminado de forçá-la, quando Francesca parou de se opor. Pouco a pouco, os gritos dela tornaram-se soluços. Foi o choro da sua mulher que fez companhia a Bernat quando alcançou o clímax. Llorenç de Bellera ouvira os gritos desesperados que procediam da janela do segundo andar e, quando o seu espião lhe confirmou que o casamento estava consumado pediu os cavalos e abandonou o local com a sua sinistra comitiva. A maioria dos convidados, abatidos, imitou-o.
A quietude abateu-se sobre a casa. Bernat, em cima da sua mulher, não sabia o que fazer. Só então se deu conta de que a mantinha fortemente agarrada pelos ombros; largou-a, para apoiar as mãos no colchão, junto à cabeça dela, mas depois o corpo caiu sobre o dela, inerte. Instintivamente, recuperou, esticando os braços para neles se apoiar, e deu com os olhos de Francesca, que o olhavam sem o ver. Nessa posição, qualquer movimento fazia que roçasse de novo pelo corpo da sua mulher. Bernat desejava evitar essas sensações, mas não sabia como fazer isso sem continuar a magoar a rapariga. Desejou poder levitar para se poder separar de Francesca sem lhe tocar. Por fim, depois de uns instantes infindáveis de indecisão, afastou-se da rapariga e ajoelhou-se junto dela; também agora não sabia o que havia de fazer: levantar-se, deitar-se ao lado dela, sair dali ou tentar justificar-se... Desviou o olhar do corpo de Francesca, caída de barriga para cima, exposta de forma soez. Procurou o rosto dela, que estava a menos de dois palmos do dele, mas não foi capaz de o encontrar. Baixou o olhar, e a visão do seu membro nu, de repente, envergonhou-o. Lamento... Um inesperado movimento de Francesca surpreendeu-o. A rapariga virara o rosto para ele». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT