Cortesia de wikipedia
e jdact
«(…) Destrancou a
porta, acendeu a luz e estacou. O contraste com o resto do quarto era evidente.
Parecia que alguém deixara a janela aberta e a corrente de ar espalhara papéis
por todo o lado. Em cima da secretária, no chão, na cadeira. Por trás da
secretária estava afixado um painel cheio de recortes de jornais, fotografias, um
pequeno mapa do norte de Itália ao centro, com indicadores de várias cores cujo
significado desconhecia, outro da Europa no topo superior direito. O que
significava aquilo tudo? Concentrou-se nas fotografias para ver se conhecia
alguém. Fita adesiva vermelha ligava duas das fotografias…, dois homens. Um bem
mais velho que o outro. O mais velho vestia um fato preto e saía de um carro
grande e preto, ladeado por dois homens de uniforme que pareciam polícias, o
outro tinha um aspecto jovem e moderno. Essas duas fotografias estavam
encimadas por um recorte do L’Arena com uma notícia antiga, datada de 1983. Atropelamento
e fuga matam padre em Verona, na Via Carlo Cattaneo. O artigo trazia um retrato
do malogrado padre a fitar a objectiva como se estivesse a posar para um
documento oficial. Bernarda não reconheceu nenhum dos homens, e aproximou-se do
painel para o observar com mais atenção.
De repente, sentiu um objecto
metálico encostar-se à sua cabeça e escutou um ruído mecânico que ouvira tantas
vezes na casa de campo da família, quando o pai carregava as armas para a caça,
e fechou os olhos apavorada. Nunca ouviu dizer, sussurrou-lhe o monsenhor
Lucarelli ao ouvido, que a curiosidade matou o gato, irmã Mia Gustaffsen?
John Scott preferiria estar na
sala de espera do consultório da doutora Pratt M.D., em Nova Iorque, do que ali
onde estava. À apreensão e à paranóia juntara-se o pânico, ingrediente
essencial para os arrepios e suores frios que tentava esconder a todo o custo. A
audiência com o Secretário de Estado da Santa Sé, na Cidade do Vaticano, em
pleno coração romano, estava marcada para aquela segunda-feira às dez e meia da
manhã. Não deixava de registar de forma sinceramente inesperada que o ramalhete
de sensações e sentimentos que o preenchiam, segundo o método da doutora Pratt
M.D., a sua psiquiatra, era muito mais negativo que positivo, facto estranho,
já que se encontrava em terras de Nosso Senhor Jesus Cristo, pretensamente um
lugar de paz e amor. Estava sentado em frente a uma estátua do Nazareno, numa versão
violenta, golpeado no ventre, nas mãos e nos pés, num visível esgar de
sofrimento inconcebível. Ao lado, outro santo, São Judas Tadeu, de tamanho
inferior, pois nada nem ninguém podia cobiçar as alturas de Jesus. O santo, bem
a propósito, era aquele a que se devia recorrer em caso de desespero e nas
causas perdidas, predição ou coincidência, num mundo onde nada acontecia por acaso.
John segurava um dossiê castanho
encostado ao peito, como se nele guardasse um segredo muito valioso. A sua mais
recente investigação levara-o ali, a uma audiência com o número dois do Vaticano,
Tarcisio, um Salesiano de Piemonte, conhecido pela sua frontalidade, se bem que
muitas vezes confundida com arrogância. Quarenta e sete minutos depois de ter
chegado e trinta e dois depois da hora marcada, John foi convidado a entrar no
gabinete por um jovem de batina preta. Um homem alto e imponente veio recebê-lo
com um meio sorriso e indicou-lhe uma cadeira, em frente a uma enorme
secretária, onde se sentar. Tarcisio foi cordato o suficiente, não demasiado, e
sentou-se no cadeirão que estava de costas para uma parede onde dominava uma
imagem do Papa Bento XVI a fitar austeramente a ampla sala. John não se
lembrava de alguma vez ter entrado num gabinete com tanto fausto, e era um
homem que se podia dar ao luxo de dizer, embora nunca o fizesse, que já entrara
duas vezes na sala oval da Casa Branca e uma no Primeiro Edifício, mais
conhecido como Senado, no Kremlin. A maioria das paredes estava coberta por
estantes que iam do chão ao tecto, repletas de livros, pastas, incunábulos,
visivelmente inventariados para que ninguém se perdesse nos meandros de séculos
de informação. Havia ainda um sofá de pele castanho de três lugares e uma
janela que dava para o pátio de São Dâmaso, a entrada oficial do palácio
medieval, parte integrante do Palácio Apostólico. Uma porta na parede oposta à da
secretária dava para outra divisão que John não conseguiu identificar por estar
fechada». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto
Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
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