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de wikipedia e jdact
«(…) Enquanto Flaviano e Arménio
esperavam à entrada do templo, maldizendo as condições climatéricas e
garantindo a segurança das mulheres que trouxeram até Iria Flavia, Priscila dobrou
o umbral da porta, com muito custo, devido ao cansaço da viagem e à
indisfarçável debilidade. Mas isso não a impedia de prosseguir de cabeça
erguida e pose seráfica, a par do sacerdote, que a protegia da chuva, e já
inteirado da razão da imprevista visita. Valéria seguia atrás, transportando o
que precisava para o culto. O resto seria ali comprado, pois que também era
necessário contribuir para o sustento do sacerdote e do próprio santuário, que
os tempos iam difíceis. Chegada ao altar, depois de um prolongado momento de
reflexão, Priscila ergueu os braços aos céus e, de pé, murmurou a ladainha que
lhe saiu do coração:
Ó
Senhora, tu que vês e atendes a quem te invoca com toda a boa-fé,
A fé
dos nossos antepassados e dos vindouros,
Dos
que no teu colo encontraram a cura para todos os males,
Consolo
para todas as tristezas,
E que
assim será para todo o sempre!
Acode-me
e protege-me nesta hora!
Ó
deusa da simplicidade, ó protectora dos mortos,
Ó
deusa das crianças de quem todos os começos surgiram,
Ó
Senhora dos eventos mágicos e da natureza!
Tu que
deste origem ao Céu e à Terra,
Que
conheces o órfão e a viúva,
Que
providencias justiça aos pobres
E que
dás abrigo aos frágeis!
Rainha
dos Céus,
Acode-me
e protege-me nesta hora!
Mãe
dos deuses,
Que
resplandeces em mil caras,
Em
quem habitam todos os nomes,
Esposa
que choras a morte do teu próprio esposo,
Senhora
das culturas verdejantes,
Senhora
da Casa que dá a Vida,
Doadora
da Luz do Céu,
Em ti
confio a vida e a saúde daquele que gerei!
Em pungente silêncio, acendeu uma
lâmpada de azeite e colocou-a delicadamente sobre o altar, derramando uma
pitada de incenso junto a uma vela que se consumia em chamas de eternidade.
Deitou uma moeda no poço que se abria sobre o lado esquerdo e voltou ao silêncio
das orações. O sacerdote, retirado para um compartimento do santuário, atrás do
altar, aproximou-se de Priscila e murmurou-lhe ao ouvido: está tudo pronto! As
duas mulheres seguiram o homem de túnica verde, muito coçada pelo uso, para a dependência
de onde saíra. Nos quatro recantos, ardiam velas e queimavam-se as essências orientais
apropriadas ao culto. Ali se consumaria a oblação final, a que ninguém mais
poderia assistir.
Valéria tirou do saco um robusto
galo negro nascido e engordado na villa,
com o bico bem amarrado por fios de fiteira. O sacerdote cortou-os, com
delicadeza. O bicho cacarejou, aliviado. Mas foi por tempo curto, pois, num único
golpe, uma lâmina sacrificial atravessou-lhe o pescoço, dando apenas tempo a
alguns rápidos espasmos do corpo sem cabeça que o comandasse. O sangue encheu de
vermelho o bacio preparado para a imolação. Talvez o súbito desaparecimento das
mulheres tivesse inquietado os homens que as protegiam, pois Valéria entreviu
os olhos dos acompanhantes a surgirem e logo desaparecerem na porta da entrada
do compartimento. E quando os dois homens regressaram à luz do dia certamente
ter-se-ão espantado com o milagre que acabara de suceder: a chuva parara,
depois de dias a fio de tormenta. O vento que soprava do tenebroso mar,
fronteira da terra que ali acabava, desvaneceu-se como que por encanto divino. Parece
que a velha deusa continua poderosa! Cala-te, Flaviano! São superstições,
idolatria, que tanto mal fazem a Deus…
Vá,
Arménio… Cuidado com a língua! Não viste que até os elementos lhe obedecem… Do
que estás a falar é de outra coisa, meu caro… De outra coisa?! Arménio virou a
face para o sul, para onde as nuvens negras corriam para tão cedo não voltarem.
Apenas faziam verter dentro de si bátegas de raiva. Foi magia… A poderosa magia
negra fez o que acabaste de assistir! Flaviano olhou para todos os lados e
encostou o indicador em riste ao nariz, antes de pronunciar as últimas
palavras, pois os três vultos saíam, aliviados e sorridentes, do templo de pedra.
Cala-te com essa conversa! Senão, serei eu a tomar as medidas…» In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
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