Milão.
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«(…) Ele, por seu lado, deveria, pelo
contrário, continuar a manter respeitosas relações de colaboração com os
inquisidores, para não incorrer na ira do arcebispo, de cuja benévola protecção
até San
Simpliciano teria tido necessidade. Um vento imprevisto, soprando entre as
arcadas que conduziam ao Broletto, trouxe ao nariz de Matthew um cheiro
intenso: provinha da Porta Oriental, onde estava em plena actividade o mercado
do peixe. Sorrindo para consigo com a ideia de que aquele fedor chegava, de vez
em quando, até às próprias sagradas naves da vizinha Basílica Maggiore, o frade
prosseguiu para a sua meta. Saído do Broletto, encaminhou-se por entre as
ruelas que iriam conduzi-lo ao Mosteiro de Santa Maria al Lentasio.
Bella
vestiu-se à pressa. O cheiro adocicado do homem que há pouco estivera com ela
na cama ainda impregnava o ar: nem a estreita porta que se abria ao fundo do
quarto e que dava para o quintal que ficava nas traseiras conseguia suavizar o
calor sufocante daquele primeiro aceno do Verão. Depois de ter ajeitado a cama,
a rapariga sentou-se no banco e virou, sobre a mesa, o pequeno porta-moedas. Limpando
a testa suada, contou o dinheiro, atentamente, empilhando as moedas umas sobre
as outras; quando se certificou de ter calculado com precisão o que ganhara
naquele dia, arrumou as moedas num saquinho de couro, apertando com força os
cordões que o fechavam. Depois, lançando um olhar furtivo para a porta, para se
assegurar de que ninguém a via, escondeu-o numa fenda da parede, bem tapada
pela cabeceira da armação de madeira
onde se apoiava o enxergão.
As mãos
tremiam-lhe. Depois dos encontros com Lanfranco, e se bem que já tivessem
passado quase vinte anos e o seu rosto de rapariguinha assumisse agora as
feições da mulher madura, marcada, ainda por cima, pelo sofrimento, o medo de
que ele a reconhecesse assaltava-a sempre. Aquela profissão, que exercia por
necessidade, havia-lhe transformado a alma, além do corpo. Bella sabia ter-se
tornado, mesmo fisicamente, uma outra pessoa: e, no entanto, de todas as vezes, os olhos duros
daquele homem observavam-na, estudavam-na como que à procura da resposta para
uma dúvida que tivesse podido provocar uma suspeita ou, Santo Deus, uma
certeza. Sempre se perguntara por que tortuosa razão do destino Lanfranco a
teria eleito, logo a ela, entre tantas prostitutas da cidade, para a habitual
suavização dos seus vigorosos apetites que, apesar da sua idade já não muito
jovem, ainda nutria. Mesmo que as suas visitas não se sujeitassem a uma
cadência fixa, já tinham passado mais de quatro anos desde a primeira vez que, tendo-a encontrado nas proximidades do
Broletto à espera de clientes, o homem a abordara. Fixando-a com curiosidade
crescente, perguntara-lhe o nome. Bella, respondera-lhe. Bela e mais?,
insistira ele num tom inquisitório.
Bella
e basta, senhor, replicara com
dureza, enquanto os seus olhos desafiavam os do seu interlocutor. Ele não lhe perguntara mais nada e acompanhara-a até à sua
casinha, entalada, entre muitas outras, ali mesmo a seguir às muralhas, passada
a Porta Romana. De repente, não o reconhecera. Também o seu rosto mostrava as
marcas dos anos: as faces estavam mais cheias, o que lhe conferia uma expressão
tranquila, desmentida, todavia, pelos frequentes lampejos de crueldade no
olhar. Fora exactamente um desses
olhares, lançados no acto
do pagamento de uma das suas prestações, que lhe fizera finalmente compreender
o que lhe recordava aquele homem. E com as lembranças viera também o medo,
transformado em terror quando, por ocasião
de um dos encontros, acabara por dizer o nome da sua família. Desde então
vivera com uma inquietação crescente, com uma angústia constante de que, mais
tarde ou mais cedo, também ele se iria lembrar: todavia, não fora possível
evitar a companhia, que, pelo contrário, se tinha convertido num opressivo
hábito. Lanfranco Calgario fora o
assassino de Caterina, a sua patroa. Dezassete
anos antes, Bella não passava de uma novíssima criada da casa Gisalbertini, em
Calepio. Quando, dois anos depois da morte da mãe, Caterina se encantara pelo
jovem e interessante sobrinho-neto do arcebispo de Milão, que era frequentador
assíduo do palácio da família, ela já servia como sua criada particular. Tinha
seguido com apreensão o desenrolar daquela história, temendo possíveis futuras
consequências, que, de facto, se tinham verificado. O pai de Caterina,
prostrado com o desaparecimento da mulher, adoecera e, ao cabo de seis meses,
morrera. A jovem encontrava-se sozinha: o irmão Gerardo partira
um ano antes para Lomellina, no séquito de uma expedição contra os habitantes
de Pavia e nunca mais voltara». In Valeria
Montaldi, O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial Notícias,
2005, ISBN 978-972-461-618-6.
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