jdact
«(…) A certa altura, escutou vozes. Algures, uma mulher
gritava por ajuda. Irmã Margarida olhou para a porta da cela, mas esta não
estava no seu lugar e nem se dera conta disso. Tentou levantar-se, porém as
dores na perna direita eram intensas. Observou a ferida: o sangue escorria, mas
não viu nenhum osso. A perna não estava partida. Rasgou a bainha do vestido,
limpou o rasgão na carne e fez um improvisado garrote para estancar o sangue. Após
alguns minutos levantou-se, mas uma forte tontura obrigou-a a sentar-se.
Enjoada, vomitou. Quando estabilizou o estômago, tentou levantar-se de novo e
desta vez já não se sentiu tão tonta. Caminhou no meio dos destroços, passou
pela porta caída e saiu para o corredor. Exausta pelo esforço, sentou-se de
novo. Deixou-se ficar assim uns minutos, até a sua respiração regularizar, observando o corredor. Um
monte de detritos impedia a passagem. Em algumas das zonas, havia mais luz do
que era habitual, pois do lado oposto ao da sua cela as paredes tinham ruído.
Podia ver-se a cidade lá fora, coberta de nuvens escuras de pó. Avançou uns
metros no corredor, na direcção da voz feminina que escutara. Viu um pé. Fechou
os olhos, assustada, e quando os reabriu viu o outro pé, e depois as pernas e a
barriga de um homem, cuja cara se encontrava tapada por traves. Afastou-as. Um
arrepio percorreu-a quando tocou naquele corpo duro, e outro quando reconheceu
o carcereiro, com quem trocara carícias e sei lá mais o quê, e que agora estava
morto, hirto, os olhos vítreos, a cara num esgar de sofrimento. Benzeu-se,
fechou-lhe os olhos e rezou uma oração. De repente, viu o fio dela no pescoço
dele, e ficou confusa. Aquilo não fazia sentido, dera o fio ao profetista, não
ao carcereiro... Ganhou coragem e, vendo que ninguém a observava, retirou o fio
e colocou-o à volta do seu pescoço. Depois, benzeu-se pela segunda vez, como
que pedindo desculpa a Deus por aquele estranho pecado que estava a cometer, e
recomeçou a andar na direcção dos gemidos.
O ruído vinha de uma cela ao fundo do
corredor. Espreitou e, no meio da balbúrdia, descobriu uma mulher. Vestia um
pano semelhante ao dela, mas era mais velha, os cabelos cinzentos. A mulher, ao vê-la, gemeu: não me consigo
mexer. Irmã Margarida aproximou-se e, com dificuldade, levantou as pedras que
prendiam as pernas da outra e disse: também
tenho uma perna a sangrar. A mulher mais velha forçou um sorriso: és jobem, eu
não. Irmã Margarida examinou a ferida: é um golpe profundo, mas não está
partida. Rasgou mais um pouco do seu vestido e limpou as escoriações, e depois
fez-lhe um garrote com o pano, tal como fizera à sua perna. Como é que saves,
és médica? Irmã Margarida sorriu, mas não respondeu e a mulher mais velha
percebeu que a rapariga só dissera aquilo para a animar, e ficou-lhe grata.
Aceitou o seu ombro e começou a andar amparada a ela. Quando saíram para o
corredor, a mulher mais velha ficou espantada ao ver tanta destruição: Deus me
balha... O que aconteceu?, perguntou. Irmã Margarida respondeu: uma parte do
palácio caiu. Olhe. A mulher mais velha olhou para o outro lado do corredor, e
viu que lá já não havia nada, a não ser ar e poeira, e a cidade ao fundo.
Deus me balha..., murmurou. As duas iam sair dali quando
uma voz se ouviu: o fim do mundo tá chegando! O fim do mundo tá chegando! Da cela
ao lado surgiu um homem, o profetista, com quem irmã Margarida falara no pátio
uns dias antes. A mulher mais velha disse-lhe: nã te caiu nenhuma pedra em
cima, belho tonto? O brasileiro riu-se, um riso que mais parecia um cacarejar,
e ripostou: se cala, velha! Cê percébe é dji mulher, não dji Deus ou do fim do
mundo! Olhou para irmã Margarida e abriu um sorriso maldoso: pomba, se cuida!
Olha qui essa tem garra d´águia, essa gosta delas tenrinhas, como tu... Irmã
Margarida contou-me que recordava perfeitamente o ligeiro alarme que sentira.
Naquela prisão do Palácio da Inquisição, estava uma freira condenada por
desviar mulheres, por dormir com elas e lhes ensinar as artes do Diabo. E era
essa mulher que amparava agora no seu ombro. Debíamos sair daqui, propôs a
freira mais velha. O «profetista concordou e, agrupados, prosseguiram mais uns
metros, até ao fim do corredor. Chegaram a uma pequena sala, que tinha duas
saídas para mais corredores. O profetista primeiro investigou o corredor à
direita deles, mas voltou para trás,
dizendo que por ali não podiam passar. Então, avançaram pelo corredor da
esquerda, afastando pedras e madeiras, e ao espreitar para dentro das celas só
viram mortos. Irmã Margarida benzia-se sempre que via um, mas os seus
companheiros não. Foram dar a uma antecâmara, onde encontraram três cadáveres
no chão, deitados lado a lado. Dois deles eram guardas, vestidos de branco. A
rapariga benzeu-se mais uma vez. Nisto, apareceu um padre, o mesmo que
confessara irmã Margarida nos últimos meses, e que supostamente lhe faria a
confissão final, na manhã do dia seguinte. O sacerdote olhou para eles e
exclamou, ao mesmo tempo surpreendido e contente: Deus seja misericordioso!!!
Ao menos vós estais vivos!!! Neste andar é uma miséria». In Domingos Amaral, Quando Lisboa
Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas
para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT