quarta-feira, 25 de setembro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Persisti em minha disposição. Respondeu-me, foram estas as suas textuais palavras: em nenhuma maneira hei-de ir nem eu nem as galés sem levar Vossa Alteza…»

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O galeão S. Mateus
«(…) Há vinte anos, disse o desconhecido e precisou: vão cair vinte anos no dia quatro de Agosto próximo. Então, perguntou o arcebispo, porque é que só agora...? Contar-vos-ei tudo como se passou. Mas sentemo-nos, tornou o prelado, entre curioso e duvidoso, e indicava uma cadeira ao peregrino. Sentaram-se os três e o estrangeiro começou: estou a morar aqui em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori. Alguns portugueses emigrados na cidade vieram até mim e logo se prontificaram a ajudar-me. Foram eles que me aconselharam a procurar-vos. E em que poderei eu...? Acreditaram em mim, depois de me ouvirem, que eu sou quem sou... E sentiram piedade. E sentirem piedade feriu o meu orgulho e por fim abateu-o. Orgulho ainda, ao cabo de vinte anos? Vede, arcebispo, como ainda não estou limpo de minhas misérias e prosápias. Pensei que ia ouvir a história de um orgulho abatido. Avaliareis a que ponto eu era orgulhoso e desatinado. Porque não segui eu, antes de partir para África, os conselhos dos mais velhos e assisados? Não era esta a pergunta dos que verdadeiramente queriam o bem do reino? Que arrogante e insensato fui! Fernando Álvares Noronha, general das galés, mandei-o ir esperar-me com elas em Cascais. Bem se arreceou ele de que eu intentava ir cometer pelo mar alguma travessura contra os corsários. Era isto em quinhentos e setenta e quatro. Não presumiu que eu chegasse ao excesso de, sem que ninguém esperasse, passar a África. Quando me viu resolvido a executá-lo, teve-o por desvario. Fidalgo velho e experimentado, contrariou-o quanto pôde. Sem proveito. Tão determinado em meu apetite e fogo da mocidade, com as louvaminhas dos aduladores, não atendia às oposições dos prudentes e zelosos. Em Tânger despedi-o para o reino com as galés, no propósito de lá ficar esperando por força de gente com que fizesse guerra aos Mouros. Repugnou ele o projecto, com fundamentos sólidos. Lembrava-me o perigo de descrédito de minha pessoa real.
Persisti em minha disposição. Respondeu-me, foram estas as suas textuais palavras: em nenhuma maneira hei-de ir nem eu nem as galés sem levar Vossa Alteza, ainda que me mandeis cortar a cabeça. Sofrê-lo-ei melhor do que desamparar-vos. E acrescentou: se assim o ordenardes, folgarei que se diga mandara Sua Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as verdades tocantes a seu serviço. Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a experiência e outras razões me mostravam e vencido agora do desvelo e autoridade de Fernando, disse-lhe enfim: ora vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade. E ordenei se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino. Honrosa resolução, em verdade, observou o arcebispo, com ar de dúvida, afagando um sobrolho crítico. Mas depois... Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti de meus planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para a grande jornada. Meu tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe conta da empresa e rogar-lhe que a aprovasse, embora com brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser regente durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês antes de falecer..., estava eu em Salvaterra, era Janeiro de setenta e oito, uma terça-feira, dia catorze..., vieram-me dizer que ela...
Já os podengos as filham pelas pernas, aferram-lhes as cerdas do cachaço em rosnidos furiosos. Soa o olifante e a algazarra ecoa pela lezíria alvoroçada. Acorrem os monteiros e procuram conter um dos bichos que forceja por fugir. El-rei avança em seu cavalo baio, sangra-o com a forquilha pelos narizes rugidores e obriga-o a descair de lado. Apeia-se, saca do punhal e afunda-lhe o aço nos peitos até ao coração. Num sufoco de sangue esmorecem os roncos da besta, que esperneia... Os cães perseguem o outro javardo, que foge lá longe. Das bandas de Lisboa vem chegando um cavaleiro. Ata a montada ao tronco de um pinheiro e saúda el-rei numa vénia. - Que há? Senhor, agravou-se a doença da rainha. Que cavalgada é essa que levanta a poeira dos caminhos? Aquele jovem loiro e formoso que ali vai com os seus à desfilada não é outro senão el-rei. Bem o reconheço. Ai, mulher! Que azadinho! Dizem que não quer casar..., el-rei e sua comitiva, que correm de Salvaterra para Lisboa...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1
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Cortesia de Difel/JDACT