jdact
O
galeão S. Mateus
«(…)
Que fogoso cavalga o reizinho na montaria! Lida o cervo e o porco-montês como
se já estivesse a combater o Mouro. Foste seu aio. Viste-o crescer nessa mania.
Desde pequeno o tenho seguido no exercitar da espada, da lança, do estoque... Não
admira tenha fortalecido mais todo o lado direito do corpo... Olhai! A matilha
dos rafeiros, em latidos excitados, levantou duas feras do seu fojo de entre o
canavial! Que corpulentas! Cuidado, Senhor! Está a rainha Catarina em seu leito
deitada, cuidam-lhe as aias do aspecto. Ora graças a Deus!, diz a camareira-mor,
aos pés da cama. Como Vossa Alteza está hoje bem melhor! Foi Nosso Senhor que a
quis festejar neste dia catorze de Janeiro..., dia dos seus anos...,
humedece-lhe uma açafata o rosto com água-de-rosas. Que linda está! De ontem
para hoje rejuvenesceu dez anos.
Já
a noite vem descendo e el-rei que não chega! Mandaram-lhe recado, como eu
ordenei? Sim, Alteza. Logo de manhã. Não deve tardar. El-rei desembarca no cais
do terreiro. Esperam-no cortesãos e fazem-lhe vénia. Tan hermoso deve estar el
campo, Alteza, diz Juan Silva, enviado de Castela, que no pudiera dejar por
menos causa que la indisposición de la reina. Ainda que fora isso, era já tempo
de vir e de partir para África. Camareira, que passos são esses aí fora? El-rei
que chega, Alteza. Retiram-se as aias, quando el-rei entra acompanhado do
médico. A quentura desceu, vem informando o físico, a respiração tornou-se
menos custosa, mas...
Senhora,
abeira-se el-rei da avó, vim, mal me deram a notícia do vosso mal-estar. Mas
Deus seja louvado, que vos venho encontrar com boa disposição no vosso
aniversário. Ah, meu querido neto! Ainda me sinto muito fraca. Logo passará,
vereis. E acrescentou: se assim o ordenardes, folgarei que se diga mandara Sua
Alteza matar um fidalgo velho por lhe dizer as verdades tocantes a seu serviço.
Bramei com ele, agastado, mas, abalado da resposta e do que a experiência e
outras razões me mostravam e vencido agora do desvelo e autoridade de Fernando,
disse-lhe enfim: ora vamos, já que porfiais, e fartar-vos-ei essa vontade. E ordenei
se suspendesse, por então, a marcha da gente do reino. Honrosa resolução, em
verdade, observou o arcebispo, com ar de dúvida, afagando um sobrolho crítico. Mas
depois... Altivo de minha condição, arrogante, insensato, não desisti de meus
planos. Adiados apenas. Prossegui os preparativos para a grande jornada. Meu
tio Henrique, quando fui a Évora dar-lhe conta da empresa e rogar-lhe que a
aprovasse, embora com brandura não deixou de me contradizer e recusou-se a ser regente
durante a minha ausência. Minha avó Catarina, um mês antes de falecer...,
estava eu em Salvaterra, era Janeiro de setenta e oito, uma terça-feira, dia
catorze... vieram-me dizer que ela...
Não,
não. Eu é que sei. Estou muito doente. Já pouco tempo resta para Nosso Senhor
me chamar. Ainda bem que vieste. Desejava tanto aliviar a consciência, esta
angústia que trago comigo, que me tira o sono e me não estanca as lágrimas... Vá,
senhora, vá, disse el-rei, compreendendo-lhe o alcance. Acalmai. Já falámos
muitas vezes desse assunto e eu... Com incontido vigor e determinação a rainha
ripostou: pois é forçoso e urgente uma última vez ouvires o que tens evitado
escutar... Que gesto de enfado esboçou el-rei!, pensou a camareira. Eu sei que
contrario o teu pendor, continua dona Catarina. És muito novo e essa tua tenção
de ganhar honra por teu próprio braço seria bem de louvar, não fosse
estorvarem-no razões ponderosas. É a empresa honrosa? Não se duvida. Mas o tempo
não é o disposto nem convinhável. És rei, és responsável por estes reinos e
impérios e ainda não asseguraste descendência nem sucessor. Três pontos por que
as leis divinas e humanas desaconselham de saíres de tua casa a fazer, em terras
estranhas e sem seres provocado, guerra duvidosa...» In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT