domingo, 29 de setembro de 2019

Paris é uma Festa. Ernest Hemingway. «Andava a aprender muito com ele, mas não possuía ainda nessa altura meios de exposição que me permitissem explicar este facto a ninguém. Além disso, tratava-se de um segredo»

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(…) Se eu, descendo à tarde, tomasse por diversas ruas, a caminho dos jardins do Luxemburgo, acabava por me entreter a passear neles e depois deitava até ao Musée du Luxembourg, onde se encontravam os grandes quadros que mais tarde foram, na sua maioria, transferidos para o Louvre e para o Jeu de Paume. Ia lá quase diariamente por causa dos Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas que eu vira pela primeira vez no Instituto de Arte de Chicago. Andava a aprender, na pintura de Cézanne, qualquer coisa que convertia o escrever em simples afirmações verdadeiras, num processo incapaz de lhes facilitar as dimensões que eu me esforçava por lhes conferir. Andava a aprender muito com ele, mas não possuía ainda nessa altura meios de exposição que me permitissem explicar este facto a ninguém. Além disso, tratava-se de um segredo. Quando já não havia luz no Luxemburgo, tornava a subir até aos jardins, acabando por ir ao apartamento da Rue Fleurus. 27, que era onde Gertrude Stein tinha o seu estúdio.
Eu e minha mulher havíamos visitado miss Stein e tanto ela como a amiga com quem vivia se haviam mostrado extremamente cordiais e afectuosas. Apreciáramos devidamente o grande estúdio povoado de grandes quadros. Aquilo era como estar numa das melhores salas de um dos mais belos museus, com a seguinte diferença porém: é que ali, além de desfrutarmos de uma vasta lareira que irradiava calor, proporcionando conforto, ofereciam-nos boas coisas de comer, chá e licores de destilação natural, feitos de ameixas escuras, de ameixas amarelas e de amoras silvestres. Essas bebidas, perfumadas e incolores, guardadas em garrafas de vidro lapidado, eram-nos servidas em cálices e, quer fossem de quetsche, de ameixazinhas amarelas ou de framboesas, todas elas sabiam aos frutos de que provinham, e, convertendo-se em fogo concentrado na nossa língua, aqueciam-nos e tornavam-nos comunicativos.
Miss Stein era vasta mas não alta e possuía a construção pesada das camponesas. Senhora de belos olhos, tinha um rosto forte de judia alemã, o qual poderia igualmente pertencer a uma mulher de Friulano. Com a sua maneira de vestir, o rosto cheio de mobilidade e o belo cabelo forte e espesso, que usava puxado para cima, talvez já desde os tempos do colégio, fazia-me lembrar uma camponesa do Norte da Itália. Falava constantemente e, a princípio, a sua conversa incidia sobre pessoas e locais. A sua companheira, dona de uma voz muito agradável, era baixa, muito morena e usava o cabelo cortado à maneira de Joana d’Arc. segundo as ilustrações de Boutet de Monvel, e tinha um nariz fortemente arqueado. Quando a conhecemos, andava a trabalhar num bordado, e o facto de ir trabalhando não a impedia de fazer as honras da casa e de conversar com minha mulher.
Conquanto fosse mantendo a sua conversa pessoal, ia ouvindo também a outra, que a cada passo tratava de interromper. Mais tarde, explicou-me que era ela quem se encarregava de conversar com as esposas. Eu e minha mulher sentíamos que as esposas eram simplesmente toleradas. Mas gostávamos de miss Stein e da sua amiga, embora esta última fosse assustadora. Os quadros, os bolos e a eau-de-vie eram verdadeiramente maravilhosos. Elas pareciam igualmente gostar de nós e tratavam-nos como se fôssemos duas crianças muito bem comportadas, muito boas e prometedoras, e eu sentia que nos perdoavam o facto de gostarmos um do outro e de sermos casados, o tempo se encarregaria de resolver esse assunto, e quando a minha mulher as convidou a tomar chá, elas aceitaram». In Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, 1960, Edição Livros do Brasil, Lisboa, Colecção Dois Mundos, 2000, ISBN 978-145-165-540-7.

Cortesia de ELdoBrasil/CDMundos/JDACT