Cortesia
de wikipedia e jdact
Explicação do sopro
«(…)
Século XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel
porque
nos lugares anónimos é muito possível ficar encosta-
do
numa parede branca vendo a água correr no chão do chu-
veiro.
Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatro-
centos
e vinte quilómetros até achar a costa. Ao alcançá-la,
tiram
suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lom-
bar
na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada
do
sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro
horas
e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um
conjunto
de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um
dos
pães ele fica procurando por algum pedaço da túnica de
Deus.
O motorista do autocarro sabe perfeitamente que dentro
da
mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de joias
que
contém uma caixa de medicamentos que contém uma
caixa
de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba
está
muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura
de
um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está
consciente
também de que todo o desenho acha sua acústica
perfeita
nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza,
o
ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em
posição
horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por
acaso
o observarmos no processo por mais de sete minutos,
podemos
reparar que sua caixa torácica constantemente toca
a
tela, sempre na mesma cadência. A moça de vinte e sete
anos
ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio
rosto,
absolutamente indecisa sobre qual dos objetos esco-
lher.
Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó d
e
arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois
passos
a galope.
um
dia você
adora
meus óculos
adoro
os teus óculos
no dia
seguinte
não
quero que venhas na fazenda
três
dias antes
você ia
adorar este lugar
você
quer vir até à fazenda?
um dia
eu rasgo
o
tecido celular do rosto
realizo
um sorriso constante
que
atravessa o morro
o ponto
mágico do morro
rasgão
alegre que fulmina
o veio
mínimo da folha
de
amendoeira
e pelo
feixe de luz tropiquente
vai
parar na cara de João
vendedor
de suco no leblon
em
ricochete João grita açaí!
qualquer
dia eu vou e chego
no
outro dia
a
cidade se aborrece
desdignificada
pela
gigante
roleta
que se
chama medo
o urubu
fica empoleirado
na
trave enferrujada
daquilo
que já foi suporte
ao
cartaz que anunciava
o
novo mundo das piscinas
fosforescentes
o
pássaro suspenso
olhando
a via rápida
e
catando caca
debaixo
da unha
temendo
o gira girar
da
pequena roda
que
circula sorte e azar
um dia
você
escreve
para seus pais
falando
sobre o amor
quarenta
dias depois
teus
pais te escrevem
falando
sobre redes de pesca
e o
perigo das redes de pesca
um dia
você me envia uma carta
depois
a outra
o
rasgão explode
recordando
ainda outra carta
de
alguns meses antes
o
postal eterno que dizia
still
crazy (after all
these
years)
faço
voto de silêncio
mas na
sacralização
horária
das avenidas
eu
penso que você
sua mãe
e seu pai
conversam
muito
sobre
peixes
e que
isso mantém quieta
a
roleta negra
e que
isso mantém aparada
a
unha do urubu
e que
isso faz homenagem
a João
e à fruta espessa
que
brilha vermelha
em
cada copo de minha cidade
um dia
você diz que me a….
eu a….-te
no dia
seguinte
a
amendoeira se expande
e
floresce cinco folhas mais
nesse
dia reparo
que
estamos contribuindo
você e
eu
para o
florestamento
da
cidade
de duas
cidades
faço
voto de silêncio
mas na
sacralização horária
da
respiração eu penso
que
apesar da sala de casino
abrigo
da gigante roleta do medo
apesar
dos golpes de gmt -3
apesar
da fita de seda que fica
ondulando
sua medida de 7 800 km
estamos
dando utilidade ao amor
alargando
os braços das amendoeiras
alargando
os braços dos jacarandás
partindo
as inúteis linhas de fronteira
e
fazendo do mundo
a
gigante floresta».
In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições
Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.
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