quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ai de mim! Não era em rezar que eu pensava naquele momento! Mas fui tirado das minhas preocupações por Diogo, que, logo activo e prático, me disse não podermos ficar ali parados quando tanta gente esperava certamente socorro»

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A Letra Pitagórica
«(…) Parecia estar também debaixo dos nossos pés. Ia a transmitir essa impressão aos meus companheiros, quando um relâmpago súbito iluminou de uma fria lividez as paredes nuas da estância, logo estalava e cascalhava um trovão seco, medonho, e dois violentos esticões estremeceram o solo. Em brechas se fenderam e apartaram as lajes com fragor e a abóbada e as paredes começaram a desabar. Instintivamente dei um salto para debaixo da pesada mesa da cozinha, a tempo de me resguardar das pedras que caíam e rebolaram durante segundos lentos, infindáveis... Quando tudo sossegou e a última pedra rolou nos montes de destroços, procurei sair de sob a mesa, mas não consegui. Estava encarcerado numa pequena gruta formada pelo tampo e pelo entulho. Apenas havia um estreito buraco por onde a custo podia introduzir a mão. Chamei: Diogo! Frei Gaspar! Acudi aqui! Felizmente Diogo havia-se deixado ficar sob o arco ogival da porta e, embora a parede se tivesse quase toda desmoronado, o arco aguentou-se firme e protegeu-o. Acorreu imediatamente e conseguiu remover alguns pedregulhos, o que me permitiu sair. Estás ferido? Não. E tu? Também não, graças a Deus! O nome de frei Gaspar acudiu-nos aos lábios. Procurámos. De um montão de pedras e caliça saía um pé, um braço em estranha posição, como partido, surgia mais acima. Ajoelhei, removi algumas pedras e a cabeça ensanguentada apareceu. Curvado sobre ela, o medalhão a pender-me do pescoço por um rasgão da camisa, segurei-lha e chamei: frei Gaspar! Abriu os olhos. Reconheceu-me, o relicário balouçava-lhe diante da face muito pálida. Notou-se-lhe o esforço que fazia tentando falar. Só consegui perceber-lhe o nome de mestre Jacob. A cabeça descaiu-lhe, rendendo a alma, um fio de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca. Ajoelhado também, Diogo rezava: requiem aeternam dona ei Donúne ...
Ai de mim! Não era em rezar que eu pensava naquele momento! Mas fui tirado das minhas preocupações por Diogo, que, logo activo e prático, me disse não podermos ficar ali parados quando tanta gente esperava certamente socorro. Não conhecíamos ainda a extensão do sinistro, presumíamos ser muito grande e grave, mas não supunhamos vir a encontrar uma visão tão horrível e apocalíptica como aquela que se nos antolhou quando saímos: O nosso convento jazia por terra em escombros, a cidade tão formosa que tínhamos visitado esse dia estava irreconhecível, poucos eram os edifícios de pé e as próprias muralhas, tão grossas e fortes, haviam em grande parte ruído. As pessoas começavam a juntar-se nas ruas, desorientadas, angustiadas. De sob as ruínas vinham ais, choro, gritos, pedidos de ajuda, Dir-se-ia que os montes de escombros tinham vozes fantasmagóricas. Na noite vagueavam crianças seminuas chorando perdidas por entre os destroços à procura das mães. Urgia acalmar a angústia, encaminhar e ordenar os braços válidos para as tarefas de acudir aos feridos, amparar crianças e velhos, e enterrar os mortos, não sobreviesse o flagelo da peste. Foram dias de pesadelo os que se seguiram, em que só a piedade nos dava ânimo perante os quadros sanguinolentos dos crânios abertos escorrendo a massa encefálica, olhos pendentes de órbitas esvaziadas, peitos esmagados, barrigas desventradas, pernas e braços estropiados. Em silêncio a maioria das pessoas trabalhava rezando, muitas vezes com as lágrimas a rolarem em fio pelas faces a baixo, outras com um ricto seco e severo na comissura dos lábios.
A princípio notou-se que gente sem escrúpulos nem sentimentos se aproveitava da ocasião para saquear a cidade. Todavia os meirinhos logo acudiram a pôr cobro ao desmando, que esmoreceu mal se espalhou a noticia de que punham em execução as mais pesadas penas para quem fosse apanhado a roubar e de que alguns já haviam sido amarrados ao pelourinho... Improvisaram-se hospitais nas arcadas onde ainda no dia anterior se realizara a feira, nos claustros que se tinham conservado de pé. Médicos eram ajudados por freiras; homens chegavam com colchões, cobertores, lençóis, toalhas; mulheres acendiam fogueiras nas praças, ao ar livre, e faziam comida em grandes panelas para acudir a toda a gente. No cemitério os coveiros caiam de cansaço e eram revezados por lavradores e outros mesteirais. Tinham-se armado aí altares e constantemente sacerdotes diziam missa a sufragar as almas dos mortos. Pouco a pouco a vida começou a normalizar-se e o trabalho da reconstrução iniciava-se. Só quando me vi mais livre é que me lembrei de mestre Jacob, certamente muito atarefado naqueles dias, pois era médico. Procurei-o nos diversos postos hospitalares improvisados, mas em nenhum me souberam dar noticias dele, ninguém o vira, os seus colegas de ofício estranhavam até. Pensámos o pior. Corri à rua onde morava: a casa era um montão de pedra sobre pedra. Um vizinho disse-me que ele e sua mulher tinham ido a enterrar dois dias atrás. In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT