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A
Letra Pitagórica
«(…) Que bem saberia agora aquele
pichel de bom vinho que nos serviu frei Gaspar!, recordo eu. Que Deus tenha em
sua glória!, emenda Diogo piedosamente com a boca cheia. Recosto-me na relva,
de papo para o ar, e não demora muito que o sono tome conta de mim. Diogo, por
caridade, não me acorda e, às tantas, faz o mesmo. Quando acordei ainda ele
ressona. Ponho-me a cantar: Eu
venho da macelada venho de colher macela. É daquelas cantigas de que os meus
ouvidos de menino estão cheios e que eu aprendi não sabia onde. Então coisa
curiosa se passa comigo. É nos olhos que eu sinto o perfume da macela e ouço os
pássaros a trinar, a chilrear, a gorjear! Os meus sentidos estão todos baralhados!
Certamente ainda não estou completamente acordado! A cor de um campo de
papoulas, que se avista na outra margem do ribeiro, entra aos berros, a baloiçar,
pelos ouvidos dentro, o sabor de um naco de presunto sinto-o no olfato, apalpo as
formas boleadas e aveludadas do perfume das estevas e as pontas aguçadas e
agrestes do cheiro forte da arruda. Todo eu sou sentidos tresloucados! Transmito
a Diogo, que acaba de acordar, os meus pensamentos, as minhas sensações. Ele
escuta pacientemente aquilo a que chama as minhas trenguices, mas às vezes acha
graça e ri-se. Creio que entrevê pela primeira vez um mundo que sozinho nunca
sonharia existir. Deitado de costas, com as pernas dobradas, deixo o olhar
perder-se lá em cima, por entre as folhas de um olmeiro, no céu azul.
Apanho um trevo amarelo e
ponho-me a chupar-lhe o caule acre, enquanto falo com Diogo. Às vezes vinha-me
à ideia compor um hino só com perfumes... Que tal achava o amigo?... Ah! Se eu
tivesse uma oficina de perfumaria!... Recolhia em frascos todos os perfumes do
mundo e depois subia ao alto da serra mais alta e, desarrolhando aqui, tapando
ali, como se faz com os registos dos órgãos das catedrais, iria deixando os
perfumes evolar-se numa imensa sinfonia de tons e meios tons, numa polifonia de
fusas e colcheias, sustenidos e bemóis numa hábil combinação de todas as
figuras do gregoriano, a gradação do climacus,
o alongar do porrectus,
o volteado do torculus,
volutas de
incensamentos que iriam subindo, chegando ao Céu!...
De repente desato a cantar:
Megálio
e
cânfora da índia cinamomo e benjoim
louvai
ao Senhor!
Malábatro
da Pérsia mélino, cíprino
louvai
ao Senhor!
Açafrão
da Assíria e da Caldeia sândalo e aloés
louvai
ao Senhor!
Aonde fora eu aprender aquilo?,
alertado Diogo soergue-se apoiado nos cotovelos. Sem responder, continuo:
Rosas
de Babilónia reseda, lírio
louvai
ao Senhor!
Musgo
e âmbar da Arábia mirto e cálamo
louvai
ao Senhor!
A partir daqui, Diogo, rendido,
passa a recitar o refrão do terceiro verso, após eu cantar a antífona dos dois
primeiros:
Resinas
de Sídon e Tiro incenso e esmirra
louvai
ao Senhor! Ónix odorífero da judeia gálbano, estoraque
louvai
ao Senhor!
Cífea
do Egipto psagda, metópio
louvai
ao Senhor!
Numa bouça próxima melros faziam
o acompanhamento com as suas flautas e o pisco-ferreiro tinia ferrinhos.
Manjerona
de Chipre mirostáfilo, bácaris
louvai
ao Senhor!
Alforva
da Hélade Panatenaico unguento
louvai
ao Senhor!
Bálsamo
de Cartago olor de mel e alcaria
louvai
ao Senhor!
Briónia
e ródino de Itália verbena, acácia
louvai
ao Senhor!
Sandáraca
da Gália exalações de lis
louvai
ao Senhor!
Cravos
de Espanha almíscar, espicanardo
louvai
ao Senhor!
Suspendo
o canto, de propósito, a espevitar Diogo. E nós?, pergunta ele». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT